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25.12.15

REGRESSO


O Natal a terminar. É tempo de regressar, à terra, à casa, às rotinas, aos desafios. Pegar na mala com lembranças da visita e partir. Mais um abraço, um beijo, um adeus até breve, que talvez seja, ou não. Confundem-se luzes e sombras, interiores e exteriores, sobrepõem-se planos, despontam difusas caligrafias. Alguém fotografa o cais da viagem, sabendo que nada se fixa, nada é definitivo, nada se sabe do que vai no coração de quem parte, de quem fica. 

Licínia Quitério

4.12.15

TELHAS


A telha portuguesa usada na cobertura das antigas casas. O seu assentamento indiciava a finalização da fase mais urgente da construção – a cobertura. O pedreiro, curvado, de rins à força do sol, os pés em equilíbrios que só ele sabia sobre as traves de madeira ainda descobertas. O servente enchia o balde de massa e levava-o ao ombro pela escada de mão acima. Com a colher de bico arredondado, o mestre pedreiro vedava com o cimento a boca das telhas que umas sobre as outras imbricava. Era bonito de se ver crescer, na inclinação do telhado, as fileiras de barro vermelho, umas às outras paralelas, e as madeiras a desaparecerem sob a protecção das telhas que as haviam de guardar das chuvas, Inverno após Inverno.
Depois de muitos consertos e algumas limpezas, também as telhas vão envelhecendo, soçobrando, deixando de ser a protecção das madeiras que, apodrecidas, descaídas, irão dizer a quem passa que a casa chegou ao fim e que das gentes que guardou já pouco sabe.

Licínia Quitério

3.12.15

AS VIOLETAS


As violetas floriram, por entre a sombra de outras plantas. Cuidado é preciso para não as magoar quando se arrancam ervas bravas. Dão o sinal da presença com o seu perfume delicadíssimo que nos inunda a mão. São também filhas e netas da minha Mãe, da minha Avó, que cuidaram de suas mães, suas avós. São assim as verdadeiras heranças: de sementes, de cores, de cheiros, de delicadezas maiores que todo o oiro. 

Licínia Quitério

22.11.15

BALADA DA TERRA



Poisar os dedos na terra
E o coração a segui-los
Porque ela só se revela
A quem a sente, a adivinha,
A toca como quem ama
Com a mansidão das tardes
Quando recolhem as aves.

Dá um nó no nosso peito
Que à noite se desenlaça
E deixa um leve tremor
A fazer-nos balançar
Na corda do desamparo.

É a terra que nos sabe
Nos acolhe ou nos rejeita
Nos oferece o verde, o grão
Ou o espinho e a secura
Conforme o pão repartimos
Ou esquecemos a ternura.

Licínia Quitério

21.11.15

A FESTA


A vida mudou muito, aqui a ocidente, mesmo para nós, os lusos, no país a descair para o mar, de costas para o outro que tão mal conhecemos. Agora, num encontro de amigos, numa celebração de aniversário, há os que vêm de outras terras para onde foram trabalhar, há os que já os visitaram, há os que falam de viagens, de aeroportos, de cidades, do que dantes se dizia, "lá fora", e de que agora se fala com alguma intimidade, porque mesmo que nunca lá tenhamos ido há a sensação de que todo o lugar nos é possível, todo o preparativo de viagem se resume a avaliar o peso duma mala. É assim, mas talvez essa ligação com o mundo faça um interregno, se suspenda num armário de velhas roupagens, de velhos medos, de novas interrogações. Hoje mesmo, a conversa vai-se pontuando de notícias de última hora, de mortandades de última hora, das bombas de ontem, do susto que vai povoando o amanhã. Por detrás de nós, há um relógio que decidiu inverter o sentido dos ponteiros, que nos lembra que tudo pode já ter sido assim, que talvez volte a ser, e que de novo digamos "lá fora" onde hoje dizemos "ali", e o mundo nunca venha a ser o que sonhámos, sem ninguém que  fosse "de fora", porque todos caberiam "cá dentro", era só aumentar o tamanho da mesa e o número dos pratos.
Depois da festa de hoje, foi nisto que pensei.

Licínia Quitério​

17.11.15

O AMÁVEL



No andar mais baixo do prédio, a janela aberta, o começo duma tarde quente, um braço a descansar no parapeito, aconchegado por pequena almofada, à medida daquele braço sem vida, a mão fechada, o polegar escondido. A procurar a janela que fica recuada e mais baixa do que o passeio onde caminho, rodo um pouco a cabeça e dou com o rosto daquele braço inerte, um rosto de olhos parados, muito abertos, um esgar no lugar da boca, o tufo de cabelos ondulados a descair sobre as têmporas. Estremeço quando percebo que conheci aquele resto de homem noutro homem inteiro, enérgico, de fala grossa, a dizer-me olá, a tratar-me pelo pequeno nome de infância. Porventura pensara que já tivesse morrido, há muito deixara de o ver, a gente esquece-se dos vivos se não continuam a passar por nós, ao menos de longe em longe, a lembrar, ainda aqui estou, tu também, se calhar sempre estaremos, quem sabe a morte não existe mesmo.

Abrando o passo e não desvio o olhar da janela, do braço do homem, do olhar vazio do homem que era o mesmo, afinal era ele, ainda quase vivo, podia ter morrido que eu nem daria por isso, mas vê-lo assim em esboço, em sombra, em arremedo, dá-me uma tristeza exagerada, sei lá eu porque entristeço assim, às vezes, era só meu conhecido, que raio, a idade torna-nos piegas. Por detrás dele, o vulto sombreado da mulher, a mulher dele que também conheci, não sei como se chama, o nome dele sei, é um nome bonito, chama-se Amável. Ela lá está, tem na mão um prato, deve ser para lhe dar de comer, uma mulher que dá de comer ao seu homem, ao que resta do seu homem, agora só Amável de nome, que a doença decerto o tornou irascível, a balbuciar palavrões que nunca usava dantes, a ameaçar bater-lhe com o braço que não morreu ainda. Há horas, muitas horas, em que ela chora, choraminga, tem tanta pena dele, tem tanta pena dela. Não pode ir-se abaixo, é seu ofício tratá-lo, alimentá-lo, vigiá-lo, suportar-lhe os acessos de fúria, aguentar, aguentar, afastar frases terríveis que se lhe atravessam na cabeça, em momentos mais negros, morre, porque não morres, eu não aguento mais. Já descobriu como apagar as palavras que nunca dirá, por mais que elas se apresentem. Vai ao café mais próximo, bebe um café ao balcão, responde à empregada, está melhorzinho, graças a Deus. Regressa a casa, devagar, a prolongar o tempo, a alongar o espaço, o que havia de lhes acontecer. 

Licínia Quitério

15.11.15

A VIAGEM DA CAIXINHA - leitura

13.11.15

NOVO LIVRO


8.11.15

RIO



Ah rio da minha vida, 
dá-me água, dá-me luz,
dá-me um fado se quiseres,
mas não pares, não emudeças,
não escureças,
que as pedras desta cidade,
o céu sobre elas deitado,
é por ti que se enamoram
e os seus nomes inscrevem
nos livros da marinhagem,
da salsujem, da ferrugem
dos barcos sempre encalhados
nos teus baixios de saudade.

Ah rio do meu caminho,
traz-me novas, traz-me naves,
traz-me verde se puderes,
não te percas, não te vendas,
não te prendas,
que os homens desta cidade,
o céu sobre eles deitado,
é por ti que filhos fazem
nas tardes da beira-rio,
no voltear da folhagem,
numa margem, noutra margem,
no lado de cá da sorte,
nos dois braços da viagem.

Licínia Quitério

4.11.15

CIÚMES


“Quem me dera no tempo de saltar os muros para ir roubar ameixas, ainda verdes, de fugir dos cães, dos cães que guardavam as árvores, os quintais, que ladravam e às vezes mordiam a quem trazia, a quem levava, a quem estava e não devia estar ali, no seu entender de cães.”
Isto dizia ele, uma das mãos na bengala, a outra a passar o lenço pela água dos olhos, azulados agora, e tão incompetentes que mal guardavam a memória do azul, daquele azul que dantes era o céu de todo o ano, ainda que chovesse e os adultos dissessem que era Inverno e o dia estava triste.
“Saltavas muros e rasgavas os calções e esfolavas os joelhos e depois mentias à tua mãe, coitada, que tinhas caído, que te tinham empurrado. Era assim ou não era? Eras fresco, sempre foste fresco, sem juízo nenhum, sempre a saltar de um lado para o outro, de quintal em quintal, de casa em casa, de mulher em mulher.”
Isto dizia ela, ajeitando o cabelo mal pintado de castanho, a raiz branca a crescer, a malinha de mão entre os dois, no banco de pedra de todas as manhãs, com uma bela vista para o jardim público.
Ele não a ouvia e repetia, na rouquidão da voz:
“Quem me dera, quem me dera naquele tempo…”
Ela olhava-o de través, com uma ternura azeda.
“Bem sei no que estás a pensar. Não é nas ameixas, não, sempre foste um valdevinos, mas agora acabou-se. É a vida, homem. Envelhecemos. O que passou, passou. Agora já não há nada a fazer.”
As mãos dele na bengala, uma sobre a outra, tremiam, de um tremor doente, que não era medo, que não era frio, que não era desejo. Deixou correr a água dos olhos. Queria lá saber que ela visse. Quem lhe dera poder ainda comer ameixas verdes como aquelas, deitar-se com mulheres frescas como aquelas.
Ela poisou uma mão sobre as dele, a parar-lhe a tremura, a adoçar a ternura.
“Deixa lá, meu velho desavergonhado. Quem me dera a mim ter para recordar frutos verdes, rapazes novos.”
Aí, ele afastou-lhe a mão das dele e endireitou as costas quanto pôde.
“Querem ver que a idade te deu para a asneira? Tem mas é juízo, mulher.”
Ela percebeu-lhe o sobrolho carregado e virou a cara para o outro lado, a esconder um sorriso.

“Vá lá, ao menos hoje sentiu ciúmes.”

Licínia Quitério

"CALCITRIN"


Pobre senhora desacertada, velha, suscitando sorrisos complacentes, com as suas vestimentas exóticas, os seus risos sincopados e estridentes. Não é tão evidente o seu desacerto porque os dias são de gente fora de catálogo, de tantos e tão variados modos e falas, procurando-se, lançando linhas ao lago vazio de peixes, talvez escondidos no fundo, lá bem no fundo, que oiçam, a seu modo, os pedidos de ajuda, de companhia, de esperança. 
Pobre senhora, a atirar frases aos que lhe falam e aos outros que não dão por ela, a ficar magrita, daquela magreza a assinalar os ossos. 
Senhora que parece perdida de um mundo que terá sido o seu, alvo de  sorrisos e também de carinhos inesperados, de atenções à sua saúde, às suas rotinas implacáveis. "Calcitrin", só toma um por dia, avó, diz a neta que o não é, obediente aos mercados, atentos sempre ao bem estar dos ossos das senhoras, por muito desacertados que elas tenham os relógios, que elas tenham a vida. 

Licínia Quitério

A louca de Chaillot - foto da net

24.10.15

UMA JOVEM MULHER


Ela é uma jovem mulher inteligente, atenta, sensata. Conversávamos sobre tudo, sobre o mundo. 
A minha vida já muito longa retira-me por vezes a humildade de perceber que viver muito nem sempre é sinónimo de pensar muito, nem tão pouco de pensar bem. Acontece por isso dar comigo a dissertar sobre temas para os quais me julgo muito informada, com ideias prontas, e afinal esbarrar com asserções tremendamente válidas, quantas vezes ao arrepio das minhas frágeis convicções. Porque a minha interlocutora me é muito querida, não sinto qualquer incómodo, antes admiração e contentamento por saber que depois de mim virá gente muito melhor, muito mais bem preparada do que eu alguma vez serei. A isto chamo o real progresso da humanidade, em que acredito, sabendo embora dos inevitáveis retrocessos. Como sempre, as mulheres e os homens de inteligência e honestidade não serão a maioria, mas serão eles e elas que levarão por diante o aperfeiçoamento das sociedades em bem estar e bem saber. 
Tenho a sorte de ter gente assim com quem trocar umas ideias, sem tempo medido, sem agenda nem sumário.

Licínia Quitério

22.10.15

A NOITE


A noite tem destas coisas. Acende cores, apaga formas, transforma, ilude, seduz. É capaz de cenários com actores invisíveis, sombras palpáveis, música improvável, talvez nascida nas raízes das plantas que teimam em crescer, rasgando as pedras. Só a Lua percebe a comédia dos homens no teatro da noite.

Licínia Quitério

UTOPIA


Utopia é capaz de ser isto mesmo. Acordar com um sorriso interior a pensar em algo bom que aconteceu, que pode não ser muito, que pode ser uma pequena luz, que nos faz pensar, nada está perdido, continua, é esse o caminho, e vamos, vamos, dia fora, noite fora, o mundo não acabou, o tempo chegará mesmo sem ser o teu.

Licínia Quitério

12.9.15

SABER FAZER


Gosto de ferramentas, daquelas palpáveis, com nomes como martelos, chaves, parafusos, e mais mil, e de tentar fazer uso delas nas reparações das pequenas avarias que vão surgindo nas casas.
Vem este gosto de quando acompanhava o meu Pai nos consertos caseiros, nas inovações de que ele era capaz, e me ensinava nomes e serventias, dando-me mesmo o cargo de ajudante - Dá cá a chave inglesa, dá cá duas porcas sextavadas, vês este parafuso, tem cabeça de tremoço. E eu, toda ufana, convencida do meu grande préstimo em trabalhos de adultos e, mais importante ainda, trabalhos de homem. 
O certo é que fui treinando as mãos nos gestos de aparafusar, pregar, compor o que estava descomposto, e apurando o gosto por saber fazer.
Cresci, o gosto e o jeitinho ficaram comigo, e tornei-me ajudante de outro mestre, não menos engenhoso,  apreciador das minhas desusadas inclinações, atendendo ao género e à época. Desse tempo, recordo o dia em que foi preciso instalar novo estendal para a roupa e o meu mestre disse - Precisamos de cerra-cabos. Ora eu, que nunca tinha ouvido falar deles, logo ali decidi não perguntar o que eram nem como eram, na minha imaginação surgindo estranhos instrumentos, de medianas dimensões, funcionando sabia eu lá como. Foi na loja de ferragens do senhor Porfírio, que eu adorava frequentar, que percebi o engano, que a homófona me tinha traído, que afinal a tal engenhoca não serrava mas cerrava, o que me fez soltar em voz de espanto - É isto? O senhor Porfírio, porventura sem entender a minha interrogação, limitou-se a dizer – Quer maior? Não temos. Lá trouxe os cerra-cabos que, bem vi, cerraram na perfeição os extremos das cordas, na tensão requerida. 
Esta vivência de proximidade com o saber fazer muito me ajudou quando me encomendaram a tradução do Inglês de um volumoso manual de ferramentas, tantas e tão variadas, que me obrigou a consultar o meu mestre, o senhor Porfírio, e especialistas do ramo, que bem me acolheram, um tanto admirados pelos meus conhecimentos do assunto, sendo eu mulher e escrevente de profissão. 
Hoje, com as mãos menos obedientes, ainda me atrevo a utilizar, se necessário, os tesouros da minha caixa de ferramentas, agora maneirinha, mas provida das armas necessárias com que se consertam os desconsertos da casa.
Tenho pena de não saber outras artes de consertar mundos. Talvez noutra vida, noutras vidas, sabe-se lá.

Licínia Quitério

3.9.15

CARTAS A LAURO



Apetece-me escrever cartas de amor, daquelas bem ridículas que se escrevem para nunca serem lidas, porque, dizem, o ridículo mata e eu já não tenho idade para morrer de amor. Que há uma idade para morrer e também uma idade para o amor.
Façamos de conta que tenho dezanove anos, ou mais, vinte e nove, é melhor assim, quase trinta, a tal idade de Balzac, mas isso era no tempo de Balzac, quando as mulheres começavam a amar muito cedo e deixavam de amar também muito cedo. Não decidi ainda como começar a carta, um princípio é sempre um tempo tão difícil, um passo no escuro, uma escrita na água, tudo tão incerto, tão sem propósito nem feitio. Meu bem, meu amor, meu X. É-me indiferente, desde que seja declaradamente possessivo. Não, é melhor dizer apenas nome dele, em diminutivo, um pequeno carinho, as mulheres gostam de diminutivos, em inho, em ito, o Zezinho, o Joãozito. Os homens preferem encurtar os nomes delas e reduzi-los a uma, duas sílabas, a Bé, a Zuca. Pelo menos era assim no meu tempo de ensaiar paixões, de as inventar, de as matar antes de terem nascido.
Vou mesmo começar a escrever cartas de amor.



      CARTA 1

Lauro,
Escrevo-te para te dizer que aprendi a amar-te muito tempo antes de te ter encontrado naquela noite, naquela sala de música e conversa, quando não éramos mais do que passageiros de vidas únicas, solitárias, livres. Reconheci-te, de outros encontros, de outros livros, de outros filmes, de outras batalhas, de outros caminhos por onde provavelmente nunca passaste e nem eu mesma sei se os percorri. Quando me disseste, o que achas disto, e te referias a um vago projecto que os teus olhos já desenhavam, eu respondi-te qualquer coisa como, é isso mesmo que eu quero, com uma tal certeza nas palavras e na voz que uma interrogação se cravou na tua testa e as minhas mãos se moveram, perdidas de mim.
Não era tarde nem cedo, nem noite, nem dia. Era o olho do furacão, era a brancura do alvo, era água a nascer. Era também alguma ave que morria, que eu bem vi a pluma que poisou na mesa e tu sopraste, e eu soprei, e eu disse princípio e tu disseste fim.
Terá sido este o tempo de começar o amor. É o que eu digo daquela noite. Será assim, ainda que digas que não estiveste lá, naquela sala, naquela noite. Há pormenores que não devem constar de uma carta de amor. Há palavras que não pertencem ao amor.
Deixo-te um beijo.
Laura


       
       CARTA 2

        Lauro,
Conforme queria dizer-te na carta de ontem, eu já te sabia de cor havia muito tempo, daquele saber sem tradução em língua viva, talvez nascido numa fala tão antiga que dela não podemos ter memória. Poderias vir ao meu encontro, ou não, em qualquer volta da estrada, num amanhecer de lírios ou numa noite de cardos. O teu rosto seria apenas um rosto, sem idade, um rosto que espera o seu tempo de madurar ou desistir, com uma ruga ondulante a atravessar a testa, o sinal da tua chegada que eu haveria de acolher, no mais doce campo de silêncio das nossas vidas.
Um dia havias de me dizer que tudo não passou de uma folha de cálculo de probabilidades, do comprovativo de uma das leis de Murphy, pura matemática, pura abstracção, que o amor não era mais do que uma teoria dos limites, nunca provada, porque assim devia ser. Eu nunca soube de ciência, nem de leis universais, nem de números ímpares, e muito menos de quadrantes solares que tu te esforçavas por construir, em salas sombrias que me entristeciam e onde, dizias, estava tudo, sendo tudo o mesmo nada de que te alimentavas. Isso foi depois. Voltarei ao assunto noutra carta.
Hoje recordo o relâmpago nos teus olhos, naquele primeiro encontro, quando, à despedida, eu só fui capaz de dizer, sei exactamente como és, e tu nada disseste, e deixaste escapar um sorriso desajeitado, de quem teme a nudez e a deseja.
Ainda hoje te vejo com esse sorriso.
Fica um beijo.

Laura



        CARTA 3

Lauro,
Escrevo esta para te dizer que finalmente arrumei os papéis daquele monte, sempre a ameaçar ruir, que fomos juntando, porque podiam vir a ser precisos, este fica, este também, que mal faz ficar aqui, depois deitamos fora, agora não, há muito trabalho à nossa espera, há muita gente à nossa espera, há tempo, há sempre tempo, dizias. E foi assim mesmo. O tempo não faltou à chamada. Faltaste tu e até eu faltei. Os papéis, esses, continuaram lá, a somar desequilíbrios, a exercitar derrocadas. Cheguei a pensar que tinham vida própria, que me espreitavam, que me provocavam, que se riam da tua inércia, da nossa inércia, da nossa vaidade de termos tempo, da nossa incapacidade de arrumar passados.
Foi numa destas tardes de morrinha, quando as estações do ano se baralham e as nossas dores também, que decidi mergulhar na pilha de folhas de todos os tamanhos, de todas as cores, a guardarem capítulos da nossa história. Puxei uma delas, e outra mais acima, e outra mais recolhida, e outra, e muitas, muitas outras, até sentir apoderar-se das minhas mãos um frenesi e o meu corpo num balanço, ano acima, ano abaixo, vida acima, vida abaixo, a desfazer o que tanto tempo nos levara a edificar.
Era já tarde quando o cansaço me fez parar, com uma dor a ameaçar-me o peito, como se fosse desatar num choro, mas, tu sabes, eu raramente choro. Adormeci ali mesmo, na cadeira junto à mesa, a pilha desfeita, o chão atapetado de folhas de papel.
Comecei esta carta a dizer-te que arrumei finalmente os papéis. Foi o que fiz. Vão ficar ali no chão, espalhados, tal qual as folhas do Outono na nossa rua. Na Primavera, se ainda não tiveres voltado, talvez arranje uma árvore onde os pendure e fique à espera que a nossa história, qualquer dia, se abra em flor.
Espero que tenhas gostado de saber.
O beijo.

Laura


CARTA 4

Lauro,
Há já bastante tempo, escreveste-me uma carta que trazia por remetente o teu nome e um número de guerra. Não era bem uma carta, era um papel dobrado e fechado que servia de carta e de envelope. Isto foi num tempo estranho que nos aconteceu e em que as mulheres recebiam papéis assim dobrados e fechados, que abriam com o coração a bater muito, sabiam lá elas se na mão que tinha escrito ainda corria sangue de vivo ou se o dono da mão já não estava a ela preso.
Foste sempre de poucas palavras e todas as que quiseste dizer couberam naquele arremedo de carta. Não vou repetir o que escreveste, o papel já se sumiu na voragem das mudanças, mas sei de cor as palavras, ainda tenho uma boa memória. Fiquei parada no lugar, no tempo, o papel suspenso nos dedos ou os dedos suspensos dele, e já a tarde se encobria quando comecei a andar, a andar, não sei para onde, não me perguntes, a gente às vezes anda porque tem de andar, não pode fazer mais nada, e depois é difícil parar, lembro-me de ter parado porque alguém perguntou, onde vais, e eu pensei que era alguém com a tua voz, e parei, e voltei ao lugar fora de tempo donde tinha partido, o papel sempre suspenso dos dedos da mão.
Nunca respondi a essa carta, que não era bem uma carta, porque nela dizias que não tinha resposta, que não querias saber de resposta, isto já eras mesmo tu a avisar que o tempo e o lugar estranhos que te tinham cabido não seriam nunca explicados, as coisas não se explicam, entendem-se ou não, como costumas dizer.
Nem penses que hoje ensaiarei uma resposta, neste meu recente afã de te escrever, de me escrever. Apenas deixo estas linhas como se fossem uma carta-resposta a outra que nem talvez tivesse chegado, que, sabes bem, eu às vezes deliro e tu, paciente, olhas-me com aquele sorriso de sempre, tão desajeitado.


Tua

         Laura



CARTA 5

Lauro,
Venho dar-te notícias do Inverno por aqui. Presumo que para ti continuem a não ter grande importância as estações do ano, já que passas por elas sem as nomeares, nem as aplaudires, nem as exaltares. Adivinho que continuas com o botão da camisa aberto, aquele junto ao pescoço, só um, que no Verão abres dois e assim contentas as pessoas que se admiram de não mudares de vestimenta.  Eu não, eu continuo a ser a rapariga que tem muito frio, muito calor, que fala do tempo como qualquer britânico que se preze, que gosta das estações dos equinócios e não do Sol a pique, nem da neve. Nunca me esqueço daquela vez que subimos a uns dois ou três mil metros de uma montanha de um país, que hoje já nem se chama assim, e tu em mangas de camisa, e a quem te dizia, não tem frio, tu respondias muito naturalmente, estamos no Verão, e estávamos, assim diziam os calendários e o dia esplendoroso no sopé da montanha. É essa a tua lógica de viveres, eu sei, embora às vezes me aflija, sem saber se estás presente ou ausente, porque esse olhar está em todo o lado e em parte nenhuma e eu, sim, também sou de ausências, mas é diferente, eu sou mais presa aos dias, enquanto tu há muito te libertaste do incómodo dos objectos, das conversas vãs, das datas que toda a gente carrega como marcos de comemorações, alegres ou tristes, próximas ou distantes. Um dia também serei assim, como tu, ou como imagino que tu és, e isso será no Inverno em que estaremos juntos de novo, não neste ainda, que está carregado de frios e de troncos cinzentos, e era disso que eu te queria dar notícia ao começar esta carta, mas, tu bem dizes, miúda vamos ao que interessa, a abreviares o assunto, e fazes bem porque quando começo a falar nunca mais me calo. 
Pelo sim, pelo não, fecha o segundo botão da camisa.


Um beijo.

Laura

CARTA 6

Lauro,
Espero que estejas bem, meu amor. Escrevi “meu amor” e logo me admirei do vocativo que uso tão pouco, menos ainda do que tu, na nossa devoção pelo sentido das palavras que não devem ser desperdiçadas, poluídas, na usura da banalidade, do automatismo que as menoriza, as mata. Hoje disse e agora sei porque o disse, mas não vou explicar, tu logo adivinharás, mesmo estando aí, nesse lugar tão longe e tão perto. Adivinhação tem sido um dos nossos jogos de muito silêncio e fortes respirações e de uma faiscante alegria quando quase gritamos a solução, em uníssono, triunfantes por instantes sobre a vida, sobre a morte. Não encolhas os ombros, no habitual disfarçado apreço pelas minhas divagações, a espicaçar-me a vontade de ir mais fundo, mais além. Eu tento, eu esforço-me, e por vezes encontro o caminho, a rua, a página, a palavra certa para chegar ao velho, à criança, ao estropiado, a um dos simples que tu elegeste e me adoptaram.
Mudando de assunto. Nem imaginas como os putos cresceram. Altos, bem mais altos do que tu, uns homens no patamar das vidas, simpáticos, desprezando brilhos, parangonas, atentos às pequenas coisas, saboreando-as, numa postura de homens-crianças que assim hão-de ser, espero, por muito mais tempo. 
Um regresso é sempre um balcão de espantos. Prepara-te para o dia. Não te apresses que ele há-de chegar, disso sabemos.

Amo-te.


Laura

CARTA 7


Lauro,

Aí por onde andas agora, duma coisa tenho a certeza, nunca de mim dirás a “minha mulher”, ou a “minha” companheira, ou a “minha” seja o que for. O meu nome dirás, ou o nome que me deste e que é meu também, precedido do artigo bem definido “a”. Nunca fui tua nem tu és meu. Somos assim, dois, não os mesmos, bem diferentes, a cada um a sua virtude, a cada um o seu defeito, a cada um o seu gostar, o seu fazer. De tão desiguais que somos se faz uma peça única, na alegria e na tristeza, na celebração dos ritos, no não dito desencanto. Não decoraste a cor dos meus olhos, nem dos meus cabelos, mas sabes de cor a minha voz e eu a tua, cada uma com seu timbre, único, intransmissível, todavia conjugáveis. Se tivesses um duplo, um duplicado, um outro igualzinho ao que de ti sei, e ele cruzasse o meu caminho, talvez eu me perdesse e na próxima carta te dissesse, de certo modo já voltaste, de certo modo não te foste embora. Sei que, se isso pudesse acontecer, dirias, tu é que sabes, ainda que a tua mão tremesse e acendesses mais um cigarro, havendo outro a arder no cinzeiro. Não, por agora é por ti que espero, imperfeito e original, de liberdade feito, impaciente nos dias, meditativo nas noites, afirmando não saber de poesia, que isso é comigo, a indicar-me o caminho sem nunca o dizeres, a preparar a viagem sem nunca dela falares. Lembrei-me hoje de te falar disto, da diferença que fizemos, que fazemos, porque encontrei aquele amigo que era teu e passou a ser meu também, o A., e referiu a noite da passagem de ano em que eu bebi demais e desatei a falar sem parar. Foi o serão em que eu declarava, disse o A., para que todos soubessem, numa repetição inflamada, “com ele eu sou eu, com ele eu sou eu, com ele…” e tu olhavas-me, sorrias e abanavas a cabeça, numa fingida censura ao meu entusiasmo, à minha exuberância desusada. Confesso que me senti um pouco envergonhada com a lembrança que o A. me trouxe, tantos anos depois, de que já não me recordava e que agora aqui te trago, nem sei bem porquê, ou sei, mas não te vou dizer hoje. Tu adivinharás, sempre adivinhas.

31.8.15

MINEIROS



Era o comboio que levava
a pedra que reluzia.
Era o homem que arrancava
o que da terra nascia.

Era o comboio que apitava,
era o homem que tossia,
era o suor que voltava,
mais um dia, mais um dia.

Até que a mina fechou.
A pedra mais ninguém quis.
O comboio enferrujou.
Do homem pouco se diz.

Licínia Quitério

Para os netos dos mineiros do Lousal

24.8.15

PALMIRA



Eu nunca estive em Palmira que viu passar os séculos, os povos, os artistas, os demónios. Palmira para mim é uma fotografia, muitas fotografias, algumas leituras, relatos em directo nenhuns. Palmira, portanto,  era como se não existisse. Uma cidade lá longe, numa encruzilhada de caminhos, muitas colunas, ruínas do que algum dia terá sido. Palmira, para mim que nunca lá estive, era uma cidade mítica. Falarem-me da sua existência era como falarem-me da Atlântida, ou de Ítaca, ou dos Jardins das Hespérides. Vivemos mais de paisagens inventadas que de lugares reais. Era assim que eu pensava em Palmira, ou não pensava, como penso, ou não penso, na muralha da China onde também não estive. 
Alguma coisa mudou para eu ter acordado a pensar na cidade de Palmira onde nunca estive. Dizem que apareceu um corpo de um homem pendurado numa das inúmeras colunas que restam de Palmira. Um corpo assassinado, exposto à turba das notícias, ávida de corpos assassinados, expostos. É um corpo de homem de que eu nunca tinha ouvido falar e cujo nome não sei pronunciar. É um corpo de um homem que estudava a cidade, o que foi a cidade, como foi a cidade. São precisos homens assim que estudam as cidades sobrevivas, os seus ossos enterrados, os seus muros esfacelados. Homens que me fazem pensar em cidades onde nunca estive e que as tornam minhas. Mataram o homem, ameaçam destruir o que resta da cidade, agitam a bandeira do medo, fazem-nos pensar no fim das cidades, dos homens que as habitam. Não sabem que há sempre uma cidade por debaixo da outra, e mais outra, e ainda mais abaixo uma pedra onde um homem há-de ler o princípio da cidade. Assim continuará Palmira, uma cidade onde nunca estive e em que pensei ao acordar.

Licínia Quitério

foto da net 

17.8.15

OS LOUCOS




Perturbavam-na, os loucos. Assediavam-na, dizia. Caíam-lhe na casa, na mesa, no outro lado da linha. Uma frase de Gabriela Llansol – “Perder a memória, pensei, é absorver o presente, numa constante iniciação, - encontrar-se num estado de nudez.” –  alertou-a. Seria isso. Os loucos perderam a memória. No seu tempo repetitivo, falam e falam, riem e riem, choram e choram. Ouvia-os, por curiosidade, por compaixão, até chegar o dia de os despedir, de lhes dizer, sem dizer, vai, não voltes ao meu mundo em construção, ainda. Dos cenários dos loucos, quase palpáveis, absurdamente nítidos, ela temia as paredes viscosas, por onde eles escorregavam, sozinhos, tão sozinhos, vestidos de antigas vozes. Sabia que os loucos haviam de voltar, outros, os mesmos, não a fitando nos olhos, vagueando pela casa como se fora a deles, suplicando-lhe, ajuda-me, e ela a afastar-lhes as mãos, os braços, chamando-lhes o olhar, que não vinha. Procuravam-na, porque nela viam a tal memória de que estavam nus, desconjuntados os corpos, falsamente frágeis, falsamente robustos. Chegava o dia em que não abria a porta, quando os sabia ali, do lado de fora, à espera de lhe contarem tudo o que os afligia, com que a afligiriam. Em silêncio, por detrás da porta fechada, ouvia-lhes os passos, a afastarem-se, a retrocederem, até deixar de os ouvir. Sentia um alívio momentâneo, uma picada no peito, talvez eu pudesse, talvez. Porque haviam de a procurar, a ela, de memória longa, enredada em contínuas revisitações? Quem lhe dera perdê-la, “absorver o presente, numa constante iniciação”, esperando o tempo em que os loucos não desviariam os olhos dos dela, e não a perturbasse o visco que lhes cobria as paredes.

Licínia Quitério

15.8.15

VENDER A CASA


Tinha umas calças largas, brancas, com bolinhas pretas. É tudo o que lembro dela, além do olhar. Vago, fixo numa qualquer distância, fora da esplanada de praia onde me encontrou, fora do dia ventoso a agitar-lhe as pernas das calças que, nesse ondular, fixei. Vi-a rondar o chapéu-de-sol, observar a base de metal, tocá-la com a ponta do pé, depois virar-se, endireitar o pescoço e dirigir-se a mim. Parou, junto à mesa, e começou a falar. Disse, não tarda este está cheio de ferrugem, como aquele, e apontava para o chapéu no outro extremo da esplanada. Continuou, o mar estraga tudo, fiz eu bem em vender a casa, a despesa em manutenção era um horror, todos os anos pinturas, a limpeza do telhado, até os vidros das janelas, tudo estragado, o sal dá cabo de tudo, bem fiz eu em vender, só o que eu pagava todos os meses ao jardineiro, e as plantas nunca ficavam nada de jeito, o mar é muito bonito, mas uma casa à beira mar é um problema, muito dinheiro, fiz bem, obras e mais obras, e roubam-nos sempre, dizem que custa tanto e depois levam tanto, e os materiais, a gente manda pôr uma coisa e eles põem outra, fartei-me, fiz muito bem, mesmo com a crise ainda fiz um negócio jeitoso, não sei bem o que fazer ao dinheiro, pô-lo a render, mas onde, os bancos estão como se vê, talvez umas acções, não sei, o que sei é que fiz bem em vender a casa, agora já não estou presa a ela, farta de ir passar férias ao mesmo sítio, e os problemas das obras, o ar do mar estraga tudo, até os fechos das portas, agora estou aqui, tenho cá família, logo vou até ao Algarve, a gente num hotel não se preocupa com nada, sai mais barato do que fazer obras na casa, as raparigas gostam do Algarve, têm lá divertimentos, fiz bem em me livrar da casa.
Não me deu tempo a dizer fosse o que fosse. No seu andar um pouco titubeante, com as calças de bolinhas a ondear, dirigiu-se para o outro lado da esplanada e sentou-se a uma mesa onde uma jovem, que se empenhava em tactear um telefone inteligente, nem sequer a olhou.
Terá ela feito bem em vender a casa? Estará agora menos sozinha, ora num hotel, ora noutro, a mudar de praia, a mudar de vida? Sabia que eu não tinha respostas para lhe dar. Foi por isso que, como chegou, assim partiu.

Licínia Quitério

12.8.15

A TASCA DO DELFIM


De passagem por Arcos-de-Valdevez, alargando a curiosidade por ruas antigas e estreitas, de belas varandas de ferro forjado, engalanadas de vasos de gerânios e petúnias, despertou-nos a curiosidade a porta aberta, por cima da qual um papel dizia ser ali A Tasca do Delfim e Museu do Acordeão. Franqueámos o degrau, lá de dentro veio um fresquinho a calhar no dia tórrido, e perguntámos se podíamos ver. A voz de mulher, no seu inconfundível sotaque minhoto, a afirmar que sim, façam o favor, vejam, vejam, sentem-se, tomem uma bebida, a ginja é uma delícia. Ficámos e percebemos que estávamos rodeados e encimados por uma profusão impensável de objectos, a cobrirem as paredes, a penderem do tecto. Um sem número de acordeãos, ao longo das prateleiras, testemunhas de lugares e tempos vários, por onde e quando o senhor Delfim tinha tocado. Muitos oferecidos, outros comprados, assim foi nascendo o Museu. Pessoa muito conhecida, o Senhor Delfim, marido da Dona Maria, já não toca por aí. Agora quem toca é o filho que lá está numa foto com o Senhor Malato, pois foi há pouco à televisão, sim, como a senhora pode ver. Por entre postais, flores de plástico, maçarocas de milho, miniaturas de alfaias, cabaças, santinhos, e tudo e tudo que se possa imaginar, deparo com fotos do Senhor Delfim, ali mesmo em sua Tasca/Museu, com Dona Amália Rodrigues e o Senhor Eusébio. Por mero acaso, fui eu então parar a um lugar de culto, uma riqueza de história de como vivem e tocam e cantam as gentes do Minho. A Dona Maria é uma Senhora linda, no seu traje garrido, a sua cabeleira ondulada, do genuíno loiro do Norte, a sua pele branca, o seu oiro galhardo, o seu sorriso de puro contentamento, ali sentada, a responder a perguntas formuladas à pressa por quem aparece sem saber o que encontra. Perguntei-lhe se a podia fotografar, pode sim, senhora, à sua vontade, com muito gosto, tire as fotos que queira, a tudo, e a mim, e endireitou-se mais e encarou a máquina. 
Aqui fica o que registei da minha visita improvável à Tasca do Delfim/Museu do Acordeão, ali ao Norte, nos Arcos.  Se passarem por lá, não percam.

Licínia Quitério

8.8.15

ESPIGUEIROS


“Nous sommes un pays de bâtisseurs», diz ela. «Hei-de pensar nisso», digo. “Somos construtores”, penso, e não penso em antas, menhirs, penso agora em espigueiros, engenhosos celeiros, esculpidos com método, cuidado, sabedoria. Os grãos guardados em suas casas de pedra, arejadas e defendidas dos roedores, dos intrusos, com suas pedras talhadas a preceito, a lembrarem estranhas capelas, suas cruzes no vértice do triângulo cimeiro, a afastarem demónios, a rogarem protecção divina. Laje sobre laje, ancestrais saberes de geómetras, de magos, de camponeses de terra dura, desfeita a pedra, bebida a água que das fragas se desprende, murmurante em seus caminhos, tantas vezes levada por onde e para onde o homem a chamou.

“Nous sommes des bâtisseurs”, disse ela. “Casa quanto caibas, terra quanto vejas”, penso. Entre o que ela diz e o que eu penso, ergue-se um homem, uma mulher, um país. Também as palavras, que são casa, antes e depois de as proferirmos. Sair de casa e voltar, sair do país e não voltar, a terra sempre tornar. Palavras presas num fio de aranha infatigável, obsessiva. Constrói-se no centro da teia. A geometria é obsessão. Não se constrói o caos, nem se destrói. É preciso achar o centro para irradiar, sair. Há quem diga fugir. Direi apenas ir, aller, go, gehen…Não há gramática que limite o construtor. Irradiar é arte de tecelão. Da pedra, do ferro, da madeira, do linho, da linha, do barro que aperta nas mãos e entrega ao Sol. 
Porque ela me disse “bâtisseurs”, pensei em casa, ou antes, na ideia de casa. E logo nos espigueiros e  nos gigantes que os ergueram. A montanha rejeita as coisas menores, as ideias menores. Grandes as mãos dos construtores, grande a fome dos lobos pela noitinha. País o nosso de tão grande achamento, de tamanha perdição.

“Nous sommes des bâtisseurs, tu sais”, disse ela.

Lcínia Quitério

6.8.15

O HOMEM DO ACORDEÃO


O homem do acordeão toca e do seu corpo brota uma dança que lhe põe na cintura requebros de juventude. Enquanto toca, anda para cá, para lá, os pés a marcarem compassos de antigas músicas. Abrindo e fechando os braços, abrindo e fechando o acordeão, abrindo e fechando o coração, a grande alegria a inundar-lhe o sorriso, os olhos vestidos de doçura, o homem do acordeão ressuscita rituais de sedução guardados na memória, que o corpo insiste em ofertar. 
É belo de verdade, o homem do acordeão, que já foi de outros mundos, que já aprendeu outras falas, que já regressou da dança de roda que a vida lhe deu, que a vida lhe tirou. Foi com a força dos braços, com a lembrança intacta do cheiro da terra, do sopro da montanha, das vozes dos animais, que o homem voltou, agora pronta a Casa, os filhos grandes, os netos nascidos.
Toca na festa e as mulheres cantam, os pares dançam. Todos sabem de cor as letras das desgarradas, nascidas para amenizar a dureza dos trabalhos da enxada, da foice, do malho. Todos sabem a vida de cor, a vida antes da Casa, a vida com a Casa. Foi com as músicas que seguraram as paredes da Casa, das casas que refizeram a aldeia a que nunca deixaram de voltar, com que nunca deixaram de sonhar, nas noites frias que o som das músicas, “là-bas”, embalava, aquecia.

Licínia Quitério

24.7.15

ESCADAS


Cansava-se, só de vê-las, só de pensá-las. Dizia “escadas” como quem soluça e explicava: “Se levassem ao céu...” 
Levavam ao salão bonito, de madeiras bonitas, cheiroso à gente bonita que ali dançara. Vermelhas, as escadas, como o seu sangue, como as faces das moças bonitas que outrora dançaram na sala bonita. 
Ficou cansada, pesada, dormente, só de pensá-las. Chegada ao cimo, chegada à sala, dobrou-se nas pernas, mirou-se num vidro e disse: “Como peixes de luz a nadar nos meus olhos.”.
“Está louca!”, exclamaram. 
Já não estava cansada. Fumou um cigarro e sorriu.

Licínia Quitério

21.7.15

LÁ ISSO...

Era uma vez um senhor doutor advogado, assim por extenso chamado, que nessa altura os causídicos eram poucos, respeitados, afamados, e supinamente necessários, já que a eles recorriam pobres e ricos, por mor de frequentes demandas. As razões dos pleitos, as mais vulgares, eram a má vizinhança de terras, a disputada serventia de águas, a questionada partilha de heranças, enfim, aquelas razões que, desde o princípio dos tempos, levaram os homens a guerrear e a mostrar a ferocidade maior de que são capazes, em nome dos “bens” a que julgam ter direito, sendo transitória a sua posse, mas disso não querendo saber. 
Era uma vez, como ia dizendo, um senhor doutor advogado, pequenino, de chapelinho um pouco à banda, ligeiro, mordaz, decidido, um fura-vidas. Tinha fama e proveito de ganhar muitas causas, de ser, na barra dos tribunais, fluente, loquaz, brilhante. Muito “prático”, o senhor doutor, como diziam, deslocava-se a casa dos pretensos clientes, a lugares escusos e de mau acesso, sempre esforçado na verificação dos teres e haveres do dito cujo, disparando, para abreviar razões, em veemente interrogação, a casinha é tua, esta terra é tua, e aquela também, o chapelinho à banda, a oscilar de gozo, se as respostas fossem afirmativas. Entregavam-se os desavindos em suas mãos e palavras, pagavam custas e mais custas, honorários e mais honorários, mas, se de bastante maquia não dispunham, o senhor doutor sossegava-os, não tens umas librazitas, não tens umas librazitas, não, então fazes-me uma hipoteca da casita que não vale nada, mas já agora juntas-lhe a terra de semeadura, que o meu trabalho é para ser pago, é para ser pago, repetia. Mas ó senhor doutor, gemia o espoliado, não há mas nem meio mas, se não fosse eu não ganhavas a causa, se não fosse eu não ganhavas a causa e ficavas sem o olival, lá isso, senhor doutor, muito lhe agradeço, mas a casa, senhor doutor. Já o outro, com a mão na porta, o olhar em volta, a avaliar o valor do espaço, e a dizer, amanhã passas lá pelo cartório, para a hipoteca.
Morreu há muito, o senhor doutor advogado, mas ainda hoje os herdeiros e os herdeiros dos herdeiros se digladiam pela posse de terras e prédios, que meia vila chegou a ser dele, o ilustre causídico, pessoa muito trabalhadora e inteligente. Lá isso…

Licínia Quitério

20.7.15

O CÓLEO



As plantas ornamentais também têm os seus tempos de serem moda. Em casa de amigos, deparei com um cóleo. Foi, muitos anos atrás, planta vulgar, nas suas variedades de cores fortes e contrastantes. Quando convenientemente cuidados, amigos que são de sol e água, cresciam e arredondavam, alegrando marquises, cozinhas, salas soalheiras. Durante muito tempo, deixei de vê-los, em casas ou nas floristas, e acabei por esquecê-los. Em seu lugar, vieram as orquídeas, aristocratas que perderam o título, e que hoje fazem parte do "mobiliário" vegetal de qualquer casa que se preze. Talvez a moda, no seu movimento circular, tenha agora recuperado os cóleos, de que poucos já saberão o nome. 
Fotografei-lhe um dos andares de cima, trouxe-o comigo, para me lembrar que hei-de procurar um para mim, para o ver crescer e arredondar, no seu festival de folhas garridas.


Licínia Quitério

15.7.15

O FUMO


Sempre triste, a rapariga. Sempre igual nos seus dias sempre iguais. Chega, em passos de uma única medida, a mesma de todos os dias, no seu caminho sempre o mesmo. Elegeu a mesa, a cadeira onde fica, à mesma hora, até à mesma hora de todos os dias. Não se pode afirmar que vista sempre as mesmas calças, a mesma blusa, mas nela tudo parece o mesmo dos dias anteriores, a fita com que prende o cabelo, a cor do cabelo, o penteado. Também iguais a mala a tiracolo, as sandálias com que marca a precisão dos passos lentos. Fuma, a rapariga, vagarosamente, enquanto bebe o café, o copo de água, enquanto folheia o jornal de sempre. Nesta monotonia, o que chama mais a atenção é o mistério no olhar da rapariga, parado, vazio, com que olha o mundo, ou não olha. Um olhar daqueles é igual a um desgosto persistente, a uma espera de nada, a um hiato no tempo da rapariga, a um buraco negro que ninguém sabe o que seja, nem sequer que exista. Tão triste, esta rapariga sempre igual, a sua figura ensaiando a transparência, até que um dia se esvaia com o fumo do cigarro.

Licínia Quitério
foto da net

9.7.15

AS RAPARIGAS



São bonitas estas raparigas de longos, largos vestidos, de ombros nus, mais morenas do que brancas, de cabelos compridos, soltos. Diria que são presenças de luz irradiante por detrás dos óculos escuros. Caminham devagar, arrastando um pouco os passos, com uma sensualidade antiga de fêmeas ainda jovens. Muitas trajam de negro, desprezando o calor com que o escuro lhes abusa os corpos. 
Enquanto caminham, ou se sentam, ou aguardam a sua vez numa fila, dedilham com obstinação os pequenos aparelhos com que ouvem, falam, escrevem, observam. As notícias que lhes chegam do outro lado do mundo, do outro lado do éter, do outro lado da vida, não parecem interessantes, surpreendentes, reconfortantes, ou assustadoras, tristes, desconfortantes. Digo isto porque, no seu afã de procurarem o outro lado, o outro no outro lado, os seus rostos permanecem lisos, sem marcas do tempo, sem vestígios de emoções. 
Enquanto caminham e se sentam e esperam, estas bonitas raparigas de longas vestes não sorriem, não choram, não se lhes adivinha traço de alegria, de espanto, de comiseração, de desgosto. Pensando melhor, nos seus rostos, aparentemente tranquilos, desenha-se por vezes uma leve decepção, os cantos da boca precocemente descaídos, um esboço de vinco entre os sobrolhos. 
São as novas mulheres, lendo e escrevendo cartas de amor e despedida, tal e qual suas avós, como elas dedilhando os dias, no desconhecimento dos anos, neste seu tempo ardente de procurar e encontrar.

Licínia Quitério

foto de Les Demoiselles d'Avignon, de Pablo Picasso - recolhida na net

28.6.15

OS BONECOS


Chegam em bando as memórias do que foi ou não, do que houve ou não houve, envoltas na névoa do caminho longo. Assim me fui recordar de meu Pai e da sua fina ironia, de suas causas, no seu discreto passar pela vida, nas marcas que em mim imprimiu, pela genética e, muito mais, pela convivência.
Coevo da Guerra Civil de Espanha, que ele referia abreviadamente como a “Guerra Civil”, terá vivido de longe, intensamente, essa luta e tragédia, junto com os seus amigos republicanos, reunidos em café, ou melhor, na sala das traseiras, ouvindo notícias pela rádio, com as “galenas” de que falava e que para mim foram mistério durante muito tempo. 
Meu Pai era abstémio radical e não suportava, fisicamente, qualquer tipo de bebida alcoólica.“Nem o cheiro”, dizia. Ao longo da sua vida, abriu uma excepção, que relatava com um misto de orgulho e repugnância, ao prometer aos amigos beber um cálice de vinho do Porto no dia em que fosse proclamada a República em Espanha. Nesse dia de júbilo, em festa de alma e de sentidos, na tal sala do café, assim o fez. Bebeu, foi aplaudido e logo vomitou, que a natureza das suas células não permitiu o abuso do trago. Também a República foi breve, dorida, regurgitada pelo terror dos dias em que nasceu. 
Tendo crescido, portanto, a ouvir falar de Espanha e de seus heróis e suas tragédias, não me admirava quando meu Pai decidia dar nomes espanhóis aos meus bonecos, que aceitava com naturalidade. Quem não achava natural e fazia cara de espanto eram as pessoas que passavam na rua e me viam à janela com os bonecos, quando à pergunta pouco original de “como se chama o teu menino?”, “como se chama a tua menina?”, eu respondia, muito despachada e séria: Jeremias e Mirita. Do outro lado, havia habitualmente um eco em interrogação e estupefacção: Jeremias?! Mirita?! E eu arrasava, ao explicar: Sim, Jeremias de la Féria Alonso e Mirita Soto del Rio.

Foi há tantos anos que já nem sei se foi assim, tal qual vos digo. 

Licínia Quitério

22.6.15

OS MIÚDOS


Os miúdos crescem, crescem. A gente nunca sabe que tamanho de fatiota lhes deve comprar. Os miúdos têm gostos próprios. Gostam do que gostam, ou não gostam. 
A menina é airosa, nas suas perninhas de bailarina. Gosta de vestidinhos rodados, coloridos, a condizer com os ganchos que põe no cabelo, com as pulseiras. É uma mulherzinha bem disposta, delicada, faladora. 
O menino é mais velho, bem crescido, sóbrio de gostos, indiferente a modas e feitios, de poucas e acertadas falas, atento à mana e dela protector.
Assim começa uma mulher, assim começa um homem. Na diversidade de gostos, de atitudes, na consciência da sua pertença a lugares, na constância dos afectos, trilhando já os seus caminhos invisíveis, inesperados. 
Podemos saber o tamanho dos seus fatos; nunca saberemos os segredos que vão aprendendo a guardar nos seus corações pequeninos.

Licínia Quitério

21.6.15

ERA UMA VEZ UM INGLÊS


Era uma vez um inglês, súbdito de Sua Majestade a Rainha Isabel, a primeira do seu trono, senhora de grande pudor e maior religiosidade. Grande era a urgência de Sua Majestade em combater os católicos, derrotá-los, custasse o que custasse, que bastava de heresias, mordomias e ousadias, com anglicanos disputadas. 
Foi nesse tempo de feroz guerrear que Dom Francis Trezian, desapossado de títulos e propriedades, meteu pernas a navio e ala que se faz tarde, em derradeira tentativa de salvar a pele da fúria dos inimigos. 
Quis o destino, como se costuma dizer, que aportasse a terras lusas, exactamente ao porto de Lisboa, cidade que sempre acolheu estranhas gentes vindas dos mais estranhos mundos, o que não era o caso, dado tratar-se de um cidadão de país aliado, por razões de casórios e domínios. A Lisboa chegou, em Lisboa ficou e, segundo não rezam as crónicas, bem se acostumou a estas gentes morenas e versejadoras, tanto melhor ainda quanto se travou de conhecimentos e amizades com conterrâneos seus, por boa ou má sorte também ali chegados. 
Por feitos ou virtudes, foi Dom Francis Trezian ganhando fama de santidade. Vá-se lá saber quando e porquê é um povo tocado por palavras ou actos incomuns na humanidade de seu tempo. A parca chegou, no ano de 1608, pondo fim à sua viagem de danos e venturas. 
Dezassete anos decorridos após a sua morte, no dia 25 de Abril de 1625, quis a comunidade inglesa de Lisboa, a católica, bem entendido, prestar-lhe homenagem devida, tratando para tal de lhe arranjar sepultura condigna. Milagre foi dito quando, ao exumarem o corpo, o encontraram inteiro e incorrupto. De santidade se trataria, sem dúvida, o que a Igreja não confirmou, mas os homens acharam, e, para afirmarem a incorrupção do corpo e o seu triunfo na terra, lhe quiseram dar túmulo vertical onde repousasse, em posição bem apropriada para uma ascensão celeste. Com tal desígnio, precisamente um ano depois, no dia 25 de Abril de 1626, foi colocado no mármore, como se de pé estivesse, Dom Francis Trezian, conforme atesta lápide evocativa, na Igreja de São Roque de Lisboa.

Licínia Quitério

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