Site Meter

4.4.09

UM CONCERTO A SOLO

Reformado de muitos teclados, este será talvez o seu último amante. As teclas sob os dedos, contra os dedos, em leves corridas e arrastados andamentos. O brilho da aliança de casamento de décadas dizendo que alguma coisa ainda perdurava do rescaldo de todos os combates. Sobre o piano um caderninho, manuscrito a azul e vermelho, em letra média, desenhada. Os títulos, apenas. As notas, não. Essas estavam todas na cabeça, orgulhosamente adornada pela cabeleira branca, suficientemente volumosa para arriscar uma poupa à Tony Bennett. Um piano pequeno, new wave, um pianista discreto e baixinho, numa loja modernaça com requintes de decoração fin-de-siècle. Ficava ali bem o piano, na amplidão da sala. Não estorvava ninguém, era apenas um ponto no centro do espaço que as gentes rodeavam, sem o tocar, sem dar sequer por ele. Ninguém o olhava, ninguém o ouvia. Era um buraco negro com um assomo de teclado. Indiferente aos manequins de plástico e aos de carne e osso, uma velha senhora sentou-se numa poltrona, afagou discretamente a imitação de Gobelin, abriu uma revista de moda, traçou a perna e aquietou-se. Nunca virou uma página da revista. Olhou sempre o pianista, ou o piano, ou a música dolente e vulgar. Ao fim de longos minutos, ela apareceu-me como um espelho de moldura rocaille e nele juro que vi reflectido, não uma risca de teclas num buraco negro, mas o concerto a solo que um pianista sempre desejara travar perante a requintada assistência do palácio dos concertos da sua Viena imaginada.


Licínia Quitério

Foto retirada da net

Acerca de mim

Também aqui

Follow liciniaq on Twitter
Powered By Blogger
 
Site Meter

Web Site Statistics
Discount Coupon Code