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24.5.08

O ROUPEIRO

F. chegava ao escritório sempre antes da hora. Os passos pesados, de paquiderme ainda jovem, os olhos presos ao chão. Na mão uma pasta, como as antigas dos meninos de escola, em que dava boleia ao almoço. O casaco verde seco era uma segunda pele que o revestia durante pelo menos dois terços do ano. Dizia Bons Dias aos colegas, com ar de quem pedia desculpa por estar presente mais um dia. Sobre a secretária, impecavelmente limpa e arrumada, esperava-o a velha “Messa” que lhe arreganhava um sorriso HCESAR, marcado por um nacionalismo bacoco de pequenos na Europa, grandes no Mundo. F. despia o casaco que colocava cuidadosamente num cabide, ajeitava-se na cadeira, deitava um olhar guloso às pernas das colegas e soltava o primeiro dos muitos suspiros da jornada. Acendia um cigarro, o vício que o fazia sofrer ataques de má consciência. A vida tão difícil e eu a queimar dinheiro! Mas adiante. Um homem não é um santo. Fazia tudo com gestos lentos, irritantemente medidos. Tal como as palavras que articulava como quem soletra, não fosse alguma fugir-lhe ao controlo e dizer o que não queria ou, mais perigoso ainda, o que verdadeiramente pensava. F. era um bom dactilógrafo, por isso chamado propriamente o F. Dactilógrafo. E ele gostava do apelido de serviço. Nada de confundi-lo com o F. Serralheiro. Não é que lhe fizesse grande mossa, mas para as coisas correrem bem, cada macaco no seu galho. F. teclava, isso sim, com desusada rapidez. Quase não olhava as teclas. Os dedos brancos e papudos faziam batidas leves e saltitantes e a campainha anunciadora de fim de linha tocava, tocava, numa cadência estonteante. Quando o trabalho ficava pronto, ia entregá-lo ao chefe, folha sobre folha, tudo muito certinho. Vestia o casaco, apertava só um botão e dirigia-se para o gabinete do venerável. Batia na porta com os nós dos dedos, a medo. Entre! Ouvia-se lá de dentro. Abria a porta, avançava, curvava-se numa mesura, estendia o braço e murmurava: Aqui tem, Sr. J. Espero que esteja tudo conforme o Sr. J. pretendia. Creia que fiz o meu melhor para ficar pronto hoje. É que, não sei se o Sr. J. já reparou, são quinze páginas. Quiiiinze. O Sr. J. cortava abrupto: Ó homem, deixe lá ver isso!
A vida privada do F. corria no mesmo ritmo do escritório. Tudo no seu lugar. A mulher, como a máquina de escrever, cumpria o seu dever, mas só se ele batesse nas teclas certas, que é como quem diz, dançava conforme a música. Que a L. não era para brincadeiras. Seca e angulosa, de queixo proeminente, mais do que aconselham os manuais de estética feminina, sempre de calças, dava azo a comentários malevolentes. A mulher do F. é o homem da casa. Havia mesmo quem afirmasse que ela lhe batia. Exageros. Parece até que eram um casal feliz. A quem Deus não quisera dar filhos, como ele dizia, em tom lastimoso. E tudo levava a crer que Deus não mudaria de ideias, até porque a L., mais velha uns anos que o marido, tendia já para a secura dos cinquenta.
Os magros salários, que a mulher do F. administrava com mão de ferro, não lhes deixavam margem para grandes devaneios. Mesmo assim, podiam dar-se ao luxo de ir, de quinze em quinze dias, aos Domingos, almoçar fora. O F. descobria o carro, que mantinha vestido com uma capota de pano cinzento, com a matrícula pintada a preto, verificava os níveis da água, do óleo, da água na bateria, e punha o motor a trabalhar um bocadinho, para aquecer. A mulher perguntava-lhe, invariavelmente: Tens os documentos? Tinha. Podia lá esquecer-se de uma coisa dessas.
Iam até à Lançada comer umas enguias bem fritinhas, como só o Zé Navalhas sabe fazer. Ou então até à Costa, saborear uns besugos grelhados que, de tão fresquinhos, pareciam vir para a mesa embrulhados na onda. Não faças esse barulho, filho. F. chupava, sorvia com volúpia pedaços de peixe branquinho, soltando-os triunfante de alguma espinha mais teimosa. As pessoas podem olhar. Deixa lá, filha, este “pexinho” está mesmo bom. Limpava os beiços ao guardanapo de papel, devagar, longamente, até este se desfazer em pequenos flocos que ficavam presos aos pelos mais rijos da cova do queixo de anjinho barroco. Comiam depois um pudim flan a meias, ela bebia um descafeinado e ele um café que fazia acompanhar de um bagacinho da casa. Ela repontava sempre. Olha esse fígado. Deus queira que um dia não te arrependas. E tamborilava os dedos na mesa, enquanto fingia olhar com atenção o quadro com o retrato da equipa do glorioso, encimado por um azulejo de louça de Alcobaça que anunciava : Aqui não se fia.

(continua)

Licínia Quitério

15.5.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

5.º e último fascículo

O telefone tocou. O Ferreira atendeu. Mesmo a propósito, a aliviar a alta tensão que se sentia em volta. Para melhor ajudar a mudança de cena, acabava de chegar um montão de correio de que era preciso tratar. Dona Clotilde não se permitia ter trabalho em atraso. Contendia-lhe com os nervos. Não era pessoa de reclamar, de reivindicar, como diziam agora os “comunas”. Dizia a palavra espúria entre dentes, não fosse algum deles (que os havia por todo o lado) ouvir e dizer como a Dona Elvira, da outra vez, na sua linguagem desbragada, muito peculiar: “Isso de comuna por acaso é comigo? Pois, partindo do pressuposto, também lhe digo que antes comuna que cornuda como certas madamas que eu conheço, a armar ao fino.”. Se tivesse um buraco tinha-se metido por ele abaixo. Mas calou, a fazer de conta que não era nada com ela, as mãos a tremer, ainda por cima na altura crítica de lacrar um envelope. Continuava firme nos seus princípios sobre as regras de bem viver: “Ca-da ma-ca-co no seu ga-lho!” Silabava o aforismo, espaçadamente. Uma frase inteira sem “erres” era para ela um raro prazer de oratória que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar. Cumpria o seu dever o melhor que sabia e o patrão, graças a Deus, nunca faltara com o ordenadinho no dia certo. Isso mesmo. Como o mundo seria melhor se todos pensassem como ela e, muito mais importante, se assim procedessem. Respirava fundo, de bem consigo própria.
Quando aquilo aconteceu, gritou, chorou, arrepelou a cabeleira farta. O corpo ficou-lhe cheiinho de urticária. Parecia um bicho, salvo seja. Uma porcaria daquelas na sua casa, não! Passaram-lhe coisas muito más pela cabeça, confessava. Se tivesse uma arma ali à mão, tinha acabado com os dois. Mas não tinha, graças a Deus. O certo é que a expressão dela devia ter sido medonha, de tal modo que os dois pombinhos, apanhados em plena e gostosa prevaricação, vestiram à pressa o que tinha sido despido, pegaram nos sapatos, não perderam tempo a calçá-los, e, ala que se faz tarde!, desceram a escada íngreme como se tivessem asas e sumiram-se da vista, toldada pela raiva, da infelicíssima Dona Clotilde.
Como sofreu, dias e noites a fio sem pregar olho. A casa parecia-lhe enorme, sem aqueles dois. Um túmulo, a bem dizer.
Lentamente, começou a deitar contas à vida, às voltas com o seu tormento. Sentia um ódio feroz contra um mundo inteiro que a teria traído, deixando-a como barata virada, a espernear em busca do equilíbrio perdido que lhe assegurasse nada mais que a própria sobrevivência. Apercebeu-se de que, apesar do cansaço, não poderia abrandar o esforço. Tinha de conseguir. Só mais um impulso, bem controlado, e a carapaça voltaria a erguer-se sobre as patitas retorcidas, cambaleantes, a princípio, mas capazes de a tirar debaixo daquele tapete que ameaçava sufocá-la, antes que a curiosidade de algum gato a descobrisse e, num gesto ágil, lhe desfechasse o golpe final.
Deles, nem sinal. Até ao dia em que o telefone retiniu pelas concavidades da casa, de súbito despertada. Atendeu, toda a tremer. A voz dele, num sussurro: “Quero ver-te. Precisamos falar. Eu explico tudo.”. Um tampão na garganta, um zumbido a atravessar-lhe as têmporas. “Está? Está?”. A voz dele, numa interrogação onde se percebia insegurança. Alguém, que não ela, respondeu finalmente por dentro da sua voz: “És tu, Tavinho? O que aconteceu?”. A voz dele, a insistir, já mais seguro: “Precisamos falar. Não te aflijas que tudo se vai arranjar. Confia em mim.”. A mão que segurava o auscultador foi descaindo, o som da voz dele continuando, afrouxando, até não se fazer entender. Desligou. A voz do Tavinho, em eco: “Confia em mim.”. Sentou-se devagar no cadeirão de verga, apoiou as mãos no colo, o olhar fixo nas grandes flores dos cortinados de cretone. Assim ficou, até deixar de sentir as pernas, dormentes como a sua vida.
Graças, mais uma vez, à bondade do senhor doutor Justino, a troco de uns pratinhos de Cantão que ele dizia não querer aceitar, conseguiu aquele emprego no escritório. A princípio, custou-lhe um bocadinho a adaptar-se. Havia dias em que parecia que tudo lhe saía mal. Enervava-se. O cordel embaraçava-se, o tubo de cola esguichava por um furinho imperceptível que, só muito tempo depois, soube ter sido feito com um alfinete pelo “marroto” do senhor Martinho, um mulato danado para a brincadeira e que lhe dizia com a boca e as vogais muito abertas: “Ah Dóna Clótilde, se a senhóra quisesse, podíamos ser tão felizes! Cá o préto nunca se nega a um bom pedaço de mulher.”. Habituou-se depressa àquele novo mundo, povoado de gente diversa de cuja existência não suspeitara nas suas anteriores vidas de piano e de cretone. Certos dias, até arriscava trautear passagens de uma ária da “Trraviata”, que os colegas aplaudiam, embora invariavelmente um deles murmurasse: “Uum…Hoje há moiro na costa!”.
Já vários anos tinham decorrido desde que o acordo fora estabelecido, com honra para ambas as partes. Encontraram-se numa leitaria, longe do bairro em que habitava. Lembra-se ainda, como se fosse hoje, de todos os pormenores do encontro. Até da nova água-de-colónia que ele trazia. Um horror! Cheirava de longe a pecado. E ela coberta de pó-de-arroz, a esconder as olheiras de uma noite de insónia, nervosa como uma adolescente. Ouviu-o falar, falar, enquanto bebia um galão e mordiscava um bolo de arroz e ele sorvia uma imperial, acompanhada de tremoços. A espuma leve da cerveja ficava presa nas pontas do bigode, mas ele logo a limpava, com o triângulo do guardanapo. E ele falava, falava, e ela pestanejava e ouvia. Era um acordo sensato. Ela é que nunca pela cabeça lhe passara que um casamento também pode trazer o seu cansaço. “A rotina, estás a ver? Depois viria o desinteresse e isso, filha, seria o pior que nos poderia acontecer: a morte dum Amor tão bonito como o nosso.”. Ele previra a situação, um homem sabe sempre muito mais da vida do que as mulheres, coitaditas. O que ela vira no quarto, naquele dia? Pura imaginação. Ou melhor, alguma coisa sobrenatural dentro dela a dar-lhe a prever o que poderia acontecer se tudo continuasse como estava. Ele falava, falava... Ela chegara ao fim do galão e limpava as migalhas do bolo do tampo da mesa para o pires. “E agorra? E aquela… infeliz?”. Não se preocupasse. Tudo previsto. Ele era o Pai e estava a cumprir a sua missão o melhor que sabia. Havia de a ajudar a tornar-se a pessoa com que ambos tinham sonhado. Chegara o tempo de ela, Clotilde, ter algum descanso nas preocupações de velar por uma jovem, ainda por cima nestes tempos tão difíceis, tão cheios de armadilhas. Quanto a eles, iriam, se ela estivesse de acordo, iniciar uma nova fase das suas vidas amorosas, com todo o picante de um amor proibido, desses que nunca morrem, pelo contrário, se incendeiam com o passar do tempo. Ela escutava, escutava... Puxara da mala, tirara de lá o espelhinho e o bâton com que retocara os lábios, esfregara-os depois um no outro, a uniformizar o tom, e voltara a pôr tudo na mala. Sentindo um leve arrepio, abotoara o botão de cima da blusa de nylon cor de salmão. Arredava a cadeira para se levantar, quando ele, intrigado, lhe atirou: “Então, não dizes nada?”. Dona Clotilde, já de pé, empertigou os peitos, olhou Gustavo bem nos olhos e, sem expressão, como se desde sempre soubesse de cor a frase exacta, disse: “Passas a dormir lá às quartas-feirras.”.
Era em dias desses que a ouviam trautear a “Trraviatta”.

FIM

Licínia Quitério

5.5.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

Capítulo 4º.


O telefone tocou. O Ferreira atendeu. Mesmo a propósito, a aliviar a alta tensão que se sentia em volta. Para melhor ajudar a mudança de cena, acabava de chegar um montão de correio de que era preciso tratar. Dona Clotilde não se permitia ter trabalho em atraso. Contendia-lhe com os nervos. Não era pessoa de reclamar, de reivindicar, como diziam agora os “comunas”. Dizia a palavra espúria entre dentes, não fosse algum deles (que os havia por todo o lado) ouvir e dizer como a Dona Elvira, da outra vez, na sua linguagem desbragada, muito peculiar: “Isso de comuna por acaso é comigo? Pois, partindo do pressuposto, também lhe digo que antes comuna que cornuda como certas madamas que eu conheço, a armar ao fino.”. Se tivesse um buraco tinha-se metido por ele abaixo. Mas calou, a fazer de conta que não era nada com ela, as mãos a tremer, ainda por cima na altura crítica de lacrar um envelope. Continuava firme nos seus princípios sobre as regras de bem viver: “Ca-da ma-ca-co no seu ga-lho!”. Silabava o aforismo, espaçadamente. Uma frase inteira sem “erres” era para ela um raro prazer de oratória que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar. Cumpria o seu dever o melhor que sabia e o patrão, graças a Deus, nunca faltara com o ordenadinho no dia certo. Isso mesmo. Como o mundo seria melhor se todos pensassem como ela e, muito mais importante, se assim procedessem. Respirava fundo, de bem consigo própria.
Quando aquilo aconteceu, gritou, chorou, arrepelou a cabeleira farta. O corpo ficou-lhe cheiinho de urticária. Parecia um bicho, salvo seja. Uma porcaria daquelas na sua casa, não! Passaram-lhe coisas muito más pela cabeça, confessava. Se tivesse uma arma ali à mão, tinha acabado com os dois. Mas não tinha, graças a Deus. O certo é que a expressão dela devia ter sido medonha, de tal modo que os dois pombinhos, apanhados em plena e gostosa prevaricação, vestiram à pressa o que tinha sido despido, pegaram nos sapatos, não perderam tempo a calçá-los, e, ala que se faz tarde!, desceram a escada íngreme como se tivessem asas e sumiram-se da vista, toldada pela raiva, da infelicíssima Dona Clotilde.
Como sofreu, dias e noites a fio sem pregar olho. A casa parecia-lhe enorme, sem aqueles dois. Um túmulo, a bem dizer.
Lentamente, começou a deitar contas à vida, às voltas com o seu tormento. Sentia um ódio feroz contra um mundo inteiro que a teria traído, deixando-a como barata virada, a espernear em busca do equilíbrio perdido que lhe assegurasse nada mais que a própria sobrevivência. Apercebeu-se de que, apesar do cansaço, não poderia abrandar o esforço. Tinha de conseguir. Só mais um impulso, bem controlado, e a carapaça voltaria a erguer-se sobre as patitas retorcidas, cambaleantes, a princípio, mas capazes de a tirar debaixo daquele tapete que ameaçava sufocá-la, antes que a curiosidade de algum gato a descobrisse e, num gesto ágil, lhe desfechasse o golpe final.
Deles, nem sinal. Até ao dia em que o telefone retiniu pelas concavidades da casa, de súbito desperta. Atendeu, toda a tremer. A voz dele, num sussurro: “Quero ver-te. Precisamos falar. Eu explico tudo.”. Um tampão na garganta, um zumbido a atravessar-lhe as têmporas. “Está? Está?”. A voz dele, numa interrogação onde se percebia insegurança. Alguém, que não ela, respondeu finalmente por dentro da sua voz: “És tu, Tavinho? O que aconteceu?”. A voz dele, a insistir, já mais seguro: “Precisamos falar. Não te aflijas que tudo se vai arranjar. Confia em mim.”. A mão que segurava o auscultador foi descaindo, o som da voz dele continuando, afrouxando, até não se fazer entender. Desligou. A voz do Tavinho, em eco: “Confia em mim.”. Sentou-se devagar no cadeirão de verga, apoiou as mãos no colo, o olhar fixo nas grandes flores dos cortinados de cretone. Assim ficou, até deixar de sentir as pernas, dormentes como a sua vida.


continua...


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