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24.1.09

UM DIA DIFERENTE


Uma avaria grande, disseram na rua. Tem de ir um camião buscar uma peça. Previsões não dão. Como não? O que é que eu vou fazer sem electricidade? Um lamento comum ao pessoal da rua.

Foi esse o dia em que falaram a dois, a três, a quantos iam chegando. Os que passavam falavam a quem se encostava às ombreiras. Do lado de fora da porta, como nunca se vira. As casas iam arrefecendo e felizmente cá fora havia sol. Melhor ficar por ali, num remanso forçado, a desatar as falas tão guardadas que nem se sabia que existiam. Quem havia de dizer que se foram descobrindo amigos comuns? O mundo é bem pequeno, já todos tinham ouvido dizer. Mas a senhora sabe de artes gráficas? É que muita gente me pergunta: Que é isso em que trabalhas? E foram falando da feitura de livros. A máquina em que agora opera tem vinte e três metros de comprimento. Um orgulho no cerrar dos lábios, no arquear das sobrancelhas.

Claro que o Senhor Joaquim conhece a vizinha. Não, como ela supunha, por lhe dar o calçado a arranjar, por lhe conceder os bons dias, as boas tardes, a que ele responde sem levantar os olhos da obra. Conhece-a desde sempre, o pai, a mãe, o marido, alguns amigos. Foram, a bem dizer, colegas na mesma grande empresa já lá vai muito tempo. Agora porta com porta. Quem diria?

E a luz que não vem. Isto está para durar. Mais vale fechar a loja por um instantinho que a freguesia também anda perdida. E vão as duas, as três, tomar um café na outra rua, onde a avaria não fez estragos. Extravagâncias a que nunca se permitem, a não ser hoje, que esta arrelia não deixa fazer nada. Já passava das cinco quando a luz apareceu. Houve uns gritinhos de alegria. Depois disseram: Bom, vamos andando que tenho tudo atrasado. Talvez amanhã voltem a falar de coisas que nem sonhavam que sabiam.

Em casa, a velha senhora, depois de passada a hora de desacerto em que todos os gestos de autómato não produziram efeito, sentou-se. Simplesmente sentou-se. Pegou num livro, pegou noutro, mas não conseguia concentrar-se na leitura. Só mais tarde entendeu que na casa havia um silêncio desconhecido. Todos os aparelhos desligados, recordou a orquestra de ruídos, de zumbidos, de estalidos que fazia parte dos seus dias. Passou a tarde a escutar os passos, as vozes na rua, os miados dos gatos nos quintais das traseiras, a tosse do vizinho do lado. A inoperância das máquinas deu-lhe a percepção de mais vida. Soube-lhe bem a imobilidade. Nem deu pelo frio da casa. Pensou, como sempre, nos seus mortos, mas não ficou com olhos húmidos. Achou que talvez estivesse próximo do silêncio deles. Fazia já escuro quando a luz voltou. Estremeceu, levantou-se e não parou até acertar todos os autómatos. Há muito que não tinha um dia como este. Avariado. Diferente.


Licínia Quitério

2.1.09

AN EYE FOR AN EYE




Fiquei a escutá-la. Tem um nome de que desconheço a pronúncia. Tzipi Livni. A pele é branca e o cabelo mostra-se loiro. É uma mulher do meu mundo a que chamam ocidental. A terra dela fica na linha fronteiriça de muitos ódios. Terras vizinhas de deuses e de profetas e de disputas sangrentas por água e terra e pastagens e camelos e oleodutos e mísseis. Berço de civilizações, diz-se. A mulher tem filhos crescidos. A mulher notabilizou-se na perseguição e aniquilação de inimigos. São inimigos dela, dos pais, dos avós e de todos os avós de toda a sua gente. A mulher tem uma inteligência aferida em 150 não sei que unidades. A mulher chefia, praticamente, a sua nação que está desde sempre em guerra. Com todo o interesse aguardei a sua comunicação sobre a guerra desta semana. Foi quando me apercebi de que tem dificuldade em articular certos sons. A língua avança demasiado e os dentes demoram em descerrar. O som produzido é semelhante a um silvo. Nesse preciso instante, há um estremecimento no rosto de maxilas largas. Só os olhos não denunciam a dificuldade, a imperfeição. São olhos parados, secos, esquecidos das pálpebras. A mulher acabou de afirmar que a guerra continuará e se intensificará até à destruição do inimigo. É ela quem ordena. Avisa que morrerão inocentes. Como em todas as guerras, explica. Retira-se, com o olhar sem pálpebras.

É uma mulher do meu tempo, do meu mundo chamado ocidental. O seu destino é a vingança.


Mahatma Gandhi disse, na língua dos seus inimigos: An eye for an eye makes us blind. Não sei em que unidades se poderá aferir a inteligência do seu coração.


Licínia Quitério

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