Eu nunca tinha ouvido falar em Harrogate, mas aconteceu achar-me por lá. Desde então o lugar passou a existir. Bem enquadrado nas brumas de suas majestades reinantes, rodeada de prados encharcados por águas de todo o ano, a povoação deixa que nos aproximemos e oferece-nos, a nós, transeuntes de fim de tarde, a disponibilidade de um jardim, a solidez da frontaria de um belo edifício vitoriano. Eram ali os Banhos, luxos de tempos não muito distantes, lugar de veraneio e descanso de aristocratas de sangue e de pensamento. Hoje, um hotel de gama média, confortavelmente estrelado. Um dos sítios eleitos para sossegos e deambulações de Agatha Christie, a senhora de imaginação prodigiosa, construtora de histórias de crimes imperfeitos desvendados por detectives astutos, de mentes necessariamente mais perversas do que as dos criminosos praticantes.
May I? A inesperada voz de falsete do empregado fez-me soltar um riso desordenado e, em lastimável convulsão, sem conseguir articular um Yes, afastei o tronco para que retirasse o prato. Ainda lhe vi o olhinho seco, traverso, como uma praga. Junto à janela, Miss Marple tamborilava os dedos na mesa e olhava alternadamente para mim e para o empregado. Encontrei-a de novo no dia seguinte, no check-in do hotel. Segurava um manuscrito de poucas páginas. Pude ver o título: "The Murder of the Laughing Guest". A voz aflautada soou por detrás do meu ombro: Good morning! Não me ri. Sou uma senhora de boas maneiras.
Licínia Quitério