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30.12.16

BOAS ENTRADAS



Previsíveis, muito previsíveis nas frases e nos gestos. Servem-se abundantemente de frases feitas, de  lugares  comuns, de jargão em moda, de provérbios que aprenderam com as mães que os ouviram das avós e que chegaram até eles deturpados, abreviados, alongados, sem falar nas anedotas de que mal sabem o final e que não colhem efeito por parte dos circunstantes.
Aguentam horas num diz que diz, num não dizer, a moerem palavras, a moerem-se, sem nunca chegarem a dizer por que razão estão naquele lugar anódino, todos os dias, à mesma hora.
Dizem que saem dali mais leves, menos chateados, até riram um bocado, o gajo é um chato, mas às vezes tem piada.
A vida são dois dias, cada um sabe de si, olha às vezes nem de mim sei, acreditam, isto é uma maneira de dizer. Chatices todos temos, mas há coisas bué da fixe, por exemplo, andas muito modernaço, vem no dicionário, para que saibas, só se for no das parvoíces, tá bem, pronto, já não sei o que ia a dizer, conta lá, desculpa a interrupção, de nada, mas apagou-se-me mesmo, deve ser do alemão, porra, vira para lá essa boca.
Agora por alemão, as palavras são como as cerejas, vocês sabem aquela do alemão, do inglês e do português, sabemos, sabemos, deixem-me contar, era assim, ah isso é que não deixamos, que lindo coro vocês fazem, amigos da onça.
Bom, tenho que ir, tenho umas coisas para fazer lá em casa, merdas de Natal, o costume, deixa lá que o trabalho não azeda, pois não, mas a mulher é que fica azeda e depois mói-me o juízo, és sempre o mesmo, guardas tudo para a última hora, e não guardas, pá, confessa, é pá, também tu, larga-me da mão.
E o teu filho vem passar a consoada convosco, claro, comidinhas como as da velha não lhe passam pelo estreito lá pela terra dos bifes. E a tua nora, ainda é a mesma, acho que sim, querem saber mais alguma coisinha, perguntar não ofende, não, claro, mas esta cena das festas e prendinhas e cantiguinhas põe-me nevoso, acreditem.
Bom, vou. Pessoal, tenham umas boas entradas, com saúde e a mim que não me falte. Boas Festas, Carnaval feliz.
Este gajo não muda. Bruto, mas bom tipo, embora a gente saiba que a vida dele não é um mar de rosas. Não há rosa sem espinhos, não é. Olá se é.
Então se a gente já não se vir antes, entrem bem o ano e não se esqueçam das cuecas azuis e de subir para a cadeira, o pior vai ser descer que o sacana deste joelho anda a pedir chuva. Está como o tempo, que isto do sol é muito bonito, mas depois vamos amargar.
Boas Festas. Saúde é o principal. Disseste bem. Saúde e alguma grana. Nem mais.

Licínia Quitério

28.12.16

A LOUCA MANSIDÃO


Vão a todos. Ela troca a boina vermelha pela branca, ele põe a gravata preta, de nó fininho, acerta com precisão o risco ao lado no cabelo grisalho, ainda bonito. Ela toma-lhe a dianteira, uma dúzia de passos, não mais, mas espera por ele à porta da casa do velório. Entram de braço dado, de olhos no chão, ar contristado. Caminham entre os circunstantes, à procura de familiares chegados do defunto a quem darão os pêsames, ele em surdina, ela em falsete.
Há-de haver um lugar vago, pelo menos um, para se sentarem e ficarem até ao final da cerimónia. Se não houver, de momento ficarão de pé, lá atrás, encostados à parede, que as pernas já não aguentam muito esforço na vertical.
Entre os assistentes trocam-se olhares interrogativos e ouve-se “não, não sei quem são”.
Vão a todos. Para poderem cumprir escrupulosamente este dever cívico que se impuseram, consultam diariamente os anúncios com as cruzes e retratos afixados nos lugares públicos, os mesmos de sempre, há muitos anos.
Com as suas idades maiores, têm envelhecido ultimamente com alguma pressa. Um dia faltarão ao encontro com os mortos da terra, quebrarão o pacto com os viajantes.

Nas suas próprias viagens, serão acompanhados por um extenso cortejo de sombras que só eles poderão ver, agora que terminaram as tarefas, incrivelmente precisas, a que a louca mansidão dos dias os condenou.

Licínia Quitério

26.12.16

AGITAÇÃO

  


  Agita as mãos e, a segui-las, os braços. Roda os ombros e com eles o tronco, a aproximar-se e a afastar-se das costas da cadeira. A cabeça também roda, roda, para um lado, para o outro. Cruza os dedos, não os prende, em leque os faz abrir e fechar, abrir e fechar, a tocarem um teclado que só a mulher saberá se existe. Os pés balançam, a um palmo do chão, batem um contra o outro, para logo poisarem e logo saltarem, alternadamente. Uma das mãos no queixo, depois no nariz, na orelha, no cabelo, a afagar, a apertar, a puxar, a ajeitar. Cruza as pernas, descruza-as, a direita sobre a esquerda, a esquerda sobre a direita. 

  A mulher que observo fala, fala em contínuo, e a voz dela também se agita, ora em murmúrio quase inaudível, ora em estridência breve, ora num fraseado monocórdico, acometido aqui e ali por uma espécie de soluço. 
Interrogo-me. Como será esta mulher quando dorme? E quando faz amor? E quando está sozinha, sem ninguém que a oiça, perdida no seu corpo desamparado? 
  Volto a observá-la. Quando ri tapa a boca com a mão, a reprimir o riso, sem reprimir a dança do corpo. Frenética, neurótica, hiperactiva, que classificação dar a esta mulher, em que escala, com que justeza? Qual o seu grau de felicidade, a tal que não se pode medir? É uma mulher, é uma mulher que fala acompanhada do ritmo alucinado do seu corpo.
  É uma mulher, uma mulher que eu observo e desconheço.

Licínia Quitério

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