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28.6.15

OS BONECOS


Chegam em bando as memórias do que foi ou não, do que houve ou não houve, envoltas na névoa do caminho longo. Assim me fui recordar de meu Pai e da sua fina ironia, de suas causas, no seu discreto passar pela vida, nas marcas que em mim imprimiu, pela genética e, muito mais, pela convivência.
Coevo da Guerra Civil de Espanha, que ele referia abreviadamente como a “Guerra Civil”, terá vivido de longe, intensamente, essa luta e tragédia, junto com os seus amigos republicanos, reunidos em café, ou melhor, na sala das traseiras, ouvindo notícias pela rádio, com as “galenas” de que falava e que para mim foram mistério durante muito tempo. 
Meu Pai era abstémio radical e não suportava, fisicamente, qualquer tipo de bebida alcoólica.“Nem o cheiro”, dizia. Ao longo da sua vida, abriu uma excepção, que relatava com um misto de orgulho e repugnância, ao prometer aos amigos beber um cálice de vinho do Porto no dia em que fosse proclamada a República em Espanha. Nesse dia de júbilo, em festa de alma e de sentidos, na tal sala do café, assim o fez. Bebeu, foi aplaudido e logo vomitou, que a natureza das suas células não permitiu o abuso do trago. Também a República foi breve, dorida, regurgitada pelo terror dos dias em que nasceu. 
Tendo crescido, portanto, a ouvir falar de Espanha e de seus heróis e suas tragédias, não me admirava quando meu Pai decidia dar nomes espanhóis aos meus bonecos, que aceitava com naturalidade. Quem não achava natural e fazia cara de espanto eram as pessoas que passavam na rua e me viam à janela com os bonecos, quando à pergunta pouco original de “como se chama o teu menino?”, “como se chama a tua menina?”, eu respondia, muito despachada e séria: Jeremias e Mirita. Do outro lado, havia habitualmente um eco em interrogação e estupefacção: Jeremias?! Mirita?! E eu arrasava, ao explicar: Sim, Jeremias de la Féria Alonso e Mirita Soto del Rio.

Foi há tantos anos que já nem sei se foi assim, tal qual vos digo. 

Licínia Quitério

22.6.15

OS MIÚDOS


Os miúdos crescem, crescem. A gente nunca sabe que tamanho de fatiota lhes deve comprar. Os miúdos têm gostos próprios. Gostam do que gostam, ou não gostam. 
A menina é airosa, nas suas perninhas de bailarina. Gosta de vestidinhos rodados, coloridos, a condizer com os ganchos que põe no cabelo, com as pulseiras. É uma mulherzinha bem disposta, delicada, faladora. 
O menino é mais velho, bem crescido, sóbrio de gostos, indiferente a modas e feitios, de poucas e acertadas falas, atento à mana e dela protector.
Assim começa uma mulher, assim começa um homem. Na diversidade de gostos, de atitudes, na consciência da sua pertença a lugares, na constância dos afectos, trilhando já os seus caminhos invisíveis, inesperados. 
Podemos saber o tamanho dos seus fatos; nunca saberemos os segredos que vão aprendendo a guardar nos seus corações pequeninos.

Licínia Quitério

21.6.15

ERA UMA VEZ UM INGLÊS


Era uma vez um inglês, súbdito de Sua Majestade a Rainha Isabel, a primeira do seu trono, senhora de grande pudor e maior religiosidade. Grande era a urgência de Sua Majestade em combater os católicos, derrotá-los, custasse o que custasse, que bastava de heresias, mordomias e ousadias, com anglicanos disputadas. 
Foi nesse tempo de feroz guerrear que Dom Francis Trezian, desapossado de títulos e propriedades, meteu pernas a navio e ala que se faz tarde, em derradeira tentativa de salvar a pele da fúria dos inimigos. 
Quis o destino, como se costuma dizer, que aportasse a terras lusas, exactamente ao porto de Lisboa, cidade que sempre acolheu estranhas gentes vindas dos mais estranhos mundos, o que não era o caso, dado tratar-se de um cidadão de país aliado, por razões de casórios e domínios. A Lisboa chegou, em Lisboa ficou e, segundo não rezam as crónicas, bem se acostumou a estas gentes morenas e versejadoras, tanto melhor ainda quanto se travou de conhecimentos e amizades com conterrâneos seus, por boa ou má sorte também ali chegados. 
Por feitos ou virtudes, foi Dom Francis Trezian ganhando fama de santidade. Vá-se lá saber quando e porquê é um povo tocado por palavras ou actos incomuns na humanidade de seu tempo. A parca chegou, no ano de 1608, pondo fim à sua viagem de danos e venturas. 
Dezassete anos decorridos após a sua morte, no dia 25 de Abril de 1625, quis a comunidade inglesa de Lisboa, a católica, bem entendido, prestar-lhe homenagem devida, tratando para tal de lhe arranjar sepultura condigna. Milagre foi dito quando, ao exumarem o corpo, o encontraram inteiro e incorrupto. De santidade se trataria, sem dúvida, o que a Igreja não confirmou, mas os homens acharam, e, para afirmarem a incorrupção do corpo e o seu triunfo na terra, lhe quiseram dar túmulo vertical onde repousasse, em posição bem apropriada para uma ascensão celeste. Com tal desígnio, precisamente um ano depois, no dia 25 de Abril de 1626, foi colocado no mármore, como se de pé estivesse, Dom Francis Trezian, conforme atesta lápide evocativa, na Igreja de São Roque de Lisboa.

Licínia Quitério

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