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8.11.12

CRÓNICA DE POBREZA


Começo por dizer da caixinha vermelha, que fora do pó-de-arroz da minha mãe, com chinesas de sombrinha aberta pintadas a negro. Gostava eu daquelas almofadas que elas traziam às costas e dos sapatos com duas tiras entre os dedos. A caixinha, que já não era de pó-de-arroz, servia de mealheiro das moedas pequeninas, escuras. Chamavam-se tostões e faziam parte da “demasia” que os meninos que faziam os recados devolviam à minha mãe. Ao fim da semana, já as demasias eram um montinho que dava aquele barulho engraçado quando eu agitava a caixa, com a tampa posta, de cima para baixo, traca-traca, traca-traca. A mãe dizia, vê lá não deixes cair que são para os pobrezinhos de sábado. A partir não sei de quando, na minha terra só havia pobrezinhos ao sábado. Imagino que eram os mesmos pobrezinhos de sexta-feira da terra vizinha a norte, e os da quinta-feira da terra vizinha ao sul e assim sucessivamente até chegarem de novo à minha terra que era a de ser pobre ao sábado. Por andarem tanto, de dia em dia da semana, a acertarem com as terras de ser pobre, por isso, julgava eu, apareciam semre descalços, com os pés muito sujos, tão sujos que a minha mãe não lhes dizia para entrarem. Por isso e porque tinham piolhos, principalmente aquele que se coçava muito e a que puseram a alcunha de O Migalhinhas. Era eu que distribuia os tostões das demasias pelos pobrezinhos de sábado de manhã. Ainda me lembro das mãos deles, só das palmas, que era essa parte que eles me mostravam, viradas para cima, meias encurvadas, para apararem os tostões escuros, um bocado mais escuros que as palmas das mãos.  A minha mãe mandava-me sempre lavar as minhas mãos depois da distribuição das esmolas, que era assim que se chamava aos tostões que iam parar às palmas das mãos dos pobrezinhos. Tenho saudades desse tempo. Não sei bem se das chinesas com almofadas nas costas, se do cheiro a azedo dos tostões, se do traca-traca da caixa para baixo e para cima e para cima e para baixo, se do sorriso da minha mãe. Sei que não tenho saudades, isso não, das palmas das mãos dos pobres das manhãs de sábado onde eu deitava tostões da caixa que já não era de pó-de-arroz.

Licínia Quitério

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