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29.6.14

SERENATA À CHUVA


A mulher  pediu ajuda para elevar a mala pesada até ao lugar que a esperava, acima dos bancos. Eram uma mulher ainda jovem, com um farto cabelo negro enrolado sobre a nuca. Devia ser viajante habitual, sabedora de comboios e do que eles podem oferecer. Tirou os sapatos  e colocou os pés já um tanto deformados sobre o pedal de descanso. Armou o tabuleiro que o banco da frente lhe oferecia e nele colocou o tablet em posição adequada para leitura. O dedo indicador direito a afagar as células invisíveis do aparelho, as imagens a descerem, a subirem, a correrem, de cá para lá, a fecharem, a abrirem textos e imagens. Fixou-se por fim no fac-simile duma página de um livro sobre direito de qualquer coisa, um daqueles textos para quem estuda ciências jurídicas, se assim as posso nomear. Uma, duas, três páginas e desistiu do estudo. Deu uma volta pelo Facebook, o dela e os de alguns amigos, não fez comentário algum e mudou de rumo. Colocou os minúsculos auscultadores nos ouvidos, ligou os fios ao tablet, procurou um filme, só uma passagem, a mais famosa. Gene Kelly cantava, só para ela, a Serenata à Chuva e dançava, dançava. Just walking in the rain, dizia a boca dele,  a mulher a meu lado movimentava a cabeça, levemente, a compasso, e os pulsos também rodavam com o guarda-chuva de Gene. Tão antigo o filme, tão nova ainda a mulher que, em vez de estudar, se decidiu pela magia do cinema, da música, agora aprisionada no seu tablet, a dar-lhe um sopro de felicidade naquela viagem de comboio descendente.  Saiu antes de mim, sorriu-me, como que a dizer que percebera o meu interesse em lhe espreitar o tablet, a música que só ela ouvia e eu também sabia. Somos todos assim, com uma música em comum. Pode é acontecer que nunca nos sentemos lado a lado no mesmo comboio descendente.

Licínia Quitério


21.6.14

O TELEMÓVEL



O meu telemóvel é um telefone que telefona e é telefonado, manda uns recados teclados e recebe outros. Ah desperta-me à hora aprazada, tem uma lanterninha  que dá um jeitão quando o quadro eléctrico faz pum!. E ainda tem para lá mais umas coisitas que não uso, que não me fazem jeito nem falta. Dir-me-ão: mas isso é um aparelho do paleolítico. Não tens um Hi qualquer coisa, pad, pod, inteligente, ou outro com outros nomes, curtos, estranhos, estranjeiros? Não, não tenho, nem preciso, nem quero. O mais complicado será quando o meu flintstone morrer e eu tiver que ir a uma loja da especialidade comprar um sucessor. Antes, compro uns manuais, consulto especialistas, se for preciso frequento mesmo um curso de formação para utilizadores. Depois, porque já tenho antecedentes nestas andanças, chego à loja e digo: quero um telefone que telefone, não tire fotografias, não cozinhe, não faça ponto-cruz e seja, de preferência, a preto e branco. O mais provável será eu sair da loja com uma cafeteira eléctrica que isso é que anda mesmo a fazer-me falta. Não sou assim tão avessa às modernices. 


Licínia Quitério

18.6.14

A OUVIDORA


Acho que sou uma boa ouvidora. Deve ser por isso que amiúde pessoas me procuram para que as oiça. Chegam e ficam, durante horas, a falar, a contarem-me histórias, verdadeiras ou inventadas, tristes ou alegres, vulgares ou inacreditáveis. Vidas que parecem banais, lineares, no desfiar da voz desenrolam-se, desdobram-se, alimentam-se, excedem-se ou apaziguam-se. Não sei quantas histórias já ouvi, quantos relatos de amores, de dores, de perdas, de carências, de desditas, também de comicidades, de curiosidades, de extravagâncias. O ouvidor concede quase sempre um intervalo na solidão, um tempo de inclusão no relacionamento humano, um pequenino aceno de concordância ou discordância, mas sempre de presença, uma presença viva, atenta, paciente, disponível. Nem sempre volta, o falador. Há quem se arrependa de ter falado a quem nada perguntou, de recear a quebra do sigilo que a conversa impõe. É assim com os menos confiantes em si próprios e nos outros, com os tímidos, com os orgulhosos. Voltam quase sempre os que se entregam, os que dão, os que procuram sem vergonha o outro extremo da própria voz. Ouvir quem quer ser ouvido não é uma ciência, é uma arte que involuntariamente aperfeiçoo e com os falantes me enriqueço, me entristeço, me percebo um pouco mais. A fala é dos maiores dons da Humanidade. Oiçamo-la.

Licínia Quitério


RONALDO


SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

O rapaz é apolíneo, hercúleo, herdeiro de dons olímpicos. O rapaz tem a elegância de um discóbulo e a ligeireza de Hermes. É expressiva a face do rapaz, com o sorriso de menino, ou o esgar das fúrias, ou o grito retumbante dos vencedores. O corpo elástico fá-lo gazela ou lince ou arco ou flecha. Certeiro, o rapaz. Perfeito. As multidões adoram-no, incensam-no, incitam-no. As multidões precisam de deuses assim, solares, como o rapaz que acende verões com o seu esplendor, a sua sugestão de vitória para sempre. Quando falhar, será um deus apeado, esquecido, como os outros. Chama-se Ronaldo, o Cristiano.

Licínia Quitério

foto da net

6.6.14

SERÁ TALVEZ...


Será talvez o efeito da usura do tempo que me atraiu nesta porta que já foi sinal de riqueza de gosto e de meios dos seus proprietários. Nova se chamou a arte que nasceu na época, com os seus novos conceitos de socialização e de apreço pelos elementos naturais. Vinha aí um novo tempo e deles a casa foi testemunho. Hoje deixa-se violar pelo tecido da aranha, pela pedra afiada. Bela ainda, na velhice, a casa, a porta, em que pousei o olhar.
 
Licínia Quitério

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