A mulher pediu ajuda
para elevar a mala pesada até ao lugar que a esperava, acima dos bancos. Eram uma mulher ainda jovem, com um farto cabelo negro enrolado sobre a nuca. Devia
ser viajante habitual, sabedora de comboios e do que eles podem oferecer. Tirou
os sapatos e colocou os pés já um tanto
deformados sobre o pedal de descanso. Armou o tabuleiro que o banco da frente
lhe oferecia e nele colocou o tablet em posição adequada para leitura. O dedo
indicador direito a afagar as células invisíveis do aparelho, as imagens a
descerem, a subirem, a correrem, de cá para lá, a fecharem, a abrirem textos e
imagens. Fixou-se por fim no fac-simile duma página de um livro sobre direito
de qualquer coisa, um daqueles textos para quem estuda ciências jurídicas, se
assim as posso nomear. Uma, duas, três páginas e desistiu do estudo. Deu uma
volta pelo Facebook, o dela e os de alguns amigos, não fez comentário algum e
mudou de rumo. Colocou os minúsculos auscultadores nos ouvidos, ligou os fios
ao tablet, procurou um filme, só uma passagem, a mais famosa. Gene Kelly
cantava, só para ela, a Serenata à Chuva e dançava, dançava. Just walking in
the rain, dizia a boca dele, a mulher a
meu lado movimentava a cabeça, levemente, a compasso, e os pulsos também
rodavam com o guarda-chuva de Gene. Tão antigo o filme, tão nova ainda a mulher
que, em vez de estudar, se decidiu pela magia do cinema, da música, agora
aprisionada no seu tablet, a dar-lhe um sopro de felicidade naquela viagem de
comboio descendente. Saiu antes de mim,
sorriu-me, como que a dizer que percebera o meu interesse em lhe espreitar o
tablet, a música que só ela ouvia e eu também sabia. Somos todos assim, com uma
música em comum. Pode é acontecer que nunca nos sentemos lado a lado no mesmo
comboio descendente.
Licínia Quitério
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