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31.5.09

QUANDO A TERNURA



Meu querido filho,

Um dia, quando eu te fiz a pergunta sacramental, o que é que queres ser quando fores grande?, tu respondeste-me muito tranquilamente que querias ser pintor.
Eu tremi. E é irónico um poeta a tremer, a temer, quando o filho lhe diz que também, à sua maneira, quer ser poeta. Eu tremi, meu filho. E sei porque é que tremi.
Percebi desde logo que tinhas escolhido o caminho mais belo e, se calhar, por isso mesmo, o mais difícil. Aquele que está mais afastado do mundo mecanicista em que vivemos. Aquele que te vai fazer voar até alturas impensáveis e mergulhar no mais fundo de ti e dos homens teus irmãos.
Vais trabalhar com as mais complexas matérias que habitam desde sempre o coração dos homens: os símbolos. Tu sabes, já sabes hoje, que os símbolos são as palavras e as formas que desde sempre nos permitiram dialogar com as nossas angústias e os nossos medos mais fundos. São as chaves que te permitirão entrar em terríveis e complexos labirintos cuja saída só tu poderás encontrar.
Mesmo assim, sabendo tudo isto, escolheste o caminho mais difícil, aquele que te vai trazer muito mais dúvidas que certezas, muito mais infinito que descontos para a reforma.
Vais trabalhar sem repartição nem horário. Levarás o teu ofício colado à pele para todo o lado. Não poderás fugir a essa febre. Tudo, a lágrima e a dor, a revolta e o júbilo, o pão e o vinho, a tua juventude e o teu envelhecimento, um corpo de mulher e um riso de criança, tudo te vai servir de matéria prima. Estás condenado a uma fantástica doença.
Tem sido um pouco assim a minha vida e, pelos vistos, à tua própria maneira, assim será a tua. Os teus passos vão levar-te a andar sempre e sempre à volta dessa fome de tudo ao mesmo tempo a que se chama Arte. Arte das palavras, das formas e das cores, da música, da dança. Arte. Tão incompreendida nesta sociedade que tudo quer reduzir ao pacote de margarina, ás pobres vedetas da televisão ou às modas que ainda mal o são e já deixaram de ser.
Não há dúvida de que escolheste o caminho mais difícil. Aquele que ninguém trilhou. Porque é o teu, só teu, e como dizia o poeta espanhol António Machado: “Caminhante, não há caminho/ faz-se o caminho ao andar.”
Vais esbarrar com muitas dificuldades e mais incompreensões. Vais sofrer na pele o ferrete de assistir ao êxito ribombante das vedetas descartáveis, dos opinosos iníquos, dos comerciantes de influências, dos fabricantes de “facas sem lâmina a que lhes falta o cabo”, como dizia o Alexandre O’Neill. Tudo isso vai acontecer enquanto tu atravessas as noites lutando contigo em busca de uma cor azul, de um perfil exacto, de uma grande harmonia ou de um imenso desacato.
Julgo que já não podes voltar atrás. Escolheste o caminho mais difícil. E, por isso, meu filho, estou cheio de orgulho em ti.

JOSÉ FANHA


Com a devida vénia, transcrevo um texto e foto retirados do blog
Queridas Bibliotecas. É um lugar de saberes e afectos onde o escritor/poeta/professor/declamador/amigo, José Fanha, nos dá conta da sua aventura diária pelos caminhos da divulgação da leitura e nos fornece pistas para os prazeres que as letras e as artes sempre nos reservam.


Licínia Quitério

25.5.09

A DIVERSIDADE DAS ESPÉCIES

Mutuamente se observam, as suricatas e os humanos. Disseram-lhes que pertencem ao mesmo maravilhoso mundo dos episodicamente vivos. Como as palmeiras anãs ou as iguanas ou a mosca da fruta ou as amibas. Passam os milénios que os homens tomam por medida e toda esta massa pulsante de viventes se transforma e adapta e evolui e continua em sucessivos estádios de comunhão com os glaciares e as estrelas. Nós, os não cientistas, nem teólogos, nem filósofos, nem poetas de alta estirpe, raras vezes nos olhamos interrogativamente e, quando o fazemos, brevemente desistimos de obter respostas que relegamos para o lugar confortável dos "insondáveis mistérios".
Vem isto a propósito duma excelente exposição sobre o pensamento e acção de Darwin e suas implicações no mundo de hoje. E a propósito também de dois jovens que encontrei numa paragem de transporte público. Não me viram. Não se viram. O rapaz exercitava freneticamente os polegares em dois telemóveis que constantemente produziam sons breves e desencontrados. Quando os sons se detinham, o rapaz continuava a agitar os polegares sem tocar os aparelhos e mordia o lábio inferior, num sinal que intrepretei como angústia perante a momentânea quebra de contacto. A rapariga trajava de negro, tinha ao peito um pin branco com uma caveira e duas tíbias a negro e lia contos de Allan Poe. Quando interrompia a leitura, os olhos eram de um lindo azul translúcido, parados como os olhos parados dos velhos.
Que sei eu daqueles humanos com que me cruzei senão o que Darwin afirmou? Eu, as suricatas, o rapaz teclante, a rapariga de negro, somos partes de um mesmo todo. Uma universal solidão nos agrega, colmatando a diversidade das espécies.


Licínia Quitério

19.5.09

Uma pista

http://geometricasnet.wordpress.com/2009/05/15/resarte/

Se me permitem, um conselho: entrem neste link, vejam, oiçam e fiquem felizes. Já agora, não deixem de dar uns passeios pelo blog do Tiago - Geométricas - que é um belo campo de olhares e sentires. A net também tem destas coisas bonitas, de gente com nervos e coração.


Licínia Quitério

7.5.09

TURISMO OCIDENTAL 2

"O meu avô contava de um homem que era tão pobre, tão pobre, que a única coisa que possuia era dinheiro."

É possível e fácil. Compra-se uma pequena península no extremo da ínsula e faz-se dela um composto vendável de praia, floresta e nativos cantando e tocando ritmos trepidantes com letras de ocasião e fraco gosto.
Antes do furacão há um vento quente que despenteia os palmares e rola os corais mortos no areal. A exuberância vegetal é um grito de espanto perante a invasão das construções que abrigam "souvenirs", como se a memória não fosse mais do que um cartaz a cores berrantes.
É o vergar do trópico cansado da sua guerra elementar há muito perdida na voragem fundacional do novo mundo.
A obesidade mórbida dos turistas ameaça a resistência da lona das cadeiras. A pele cor de azeviche dos indígenas forra-lhes a magreza e faz sobressair as dentaduras arruinadas e aparentemente muito brancas.
O reggae põe-me doida, digo. Um slogan, como qualquer outro, que inventei para meu conforto na passagem por lugares que não consigo adjectivar.
Não fora aquela história que um guia contou, floresta adentro, e que acima registo, talvez a solidão dos homens me tivesse sido insuportável.

Licínia Quitério

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