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28.12.07

DESVAIRADAS GENTES (Folhetim)

Fascículo 5º.

Ela era uma mulher ruiva, com cabelos naturalmente encaracolados e revoltos, a lembrar labaredas, com a pele pejada de sardas a mancharem o fundo leitoso. As ancas possantes, os seios ainda firmes, os artelhos finos de cavalo de raça, davam-lhe um ar picante que provocava olhares gulosos dos homens do bairro, pouco habituados a mulheres como a Elvina do Marreco. Como resumia o malandreco do empregadito do CAFUNÉ, Apanhá-la…
Davam passeios ao Domingo, de braço dado, pelos jardins da Cidade que sempre acolhem os solitários, seja a velha senhora de bengala, com um traço irregular de bâton, sejam casais arrastados por inquebráveis rotinas, sejam crianças birrentas que mais tarde dirão que tiveram infâncias felicíssimas, sejam os inveterados jogadores de sueca “ali a batê-las” como se arriscassem os anos sobrantes. A todos os jardins acolhiam e a ninguém perguntavam ao que vinha nem quem era. Alguns tinham pavões que abriam o leque, num fragor inesperado e afirmativo, e era como se uma deusa por momentos se mostrasse esplendorosa de formas e de cores, a dar um toque raro de beleza àqueles Domingos tão sem graça.
João e Elvina compravam pacotes de amendoins e pevides de abóbora, medidos em barricas de madeira que em tempos de galhardia tinham guardado ovos moles. Sentavam-se em banquinhos escolhidos, à sombra de árvores frondosas, com a condição de não assentarem em terreno em declive. Uma vez, tinham caído nessa e, à custa do esforço continuado de contrariarem a obliquidade do assento, tinham chegado a casa com umas dores nas “cruzes” que durante dias os impediram de retomar a perpendicularidade conveniente. Esta exigência obrigava-os por vezes a estratégias dissimuladas, descrevendo passadas sinuosas e súbitos recuos e avanços no terreno, para serem os primeiros a alcançar o cobiçado assento. Uma vez instalados, trocavam monossílabos e poucas, pouquíssimas frases completas. Nos Domingos de Verão, por volta das seis da tarde, João perguntava: O que é o jantar? Elvina respondia, com um certo ar de fastio nos olhos cor de avelã, por detrás dos óculos de aro de massa translúcida: Os restos do cozido do almoço. Aahn! Então vamos? Iam. Num pulso a malinha de plástico, creme ou preta conforme fosse Verão ou Inverno, no outro o antebraço do marido com a mão necessariamente enfiada no bolso das calças.

..


O barbeiro era baixote, como já foi dito, mas a Elvina, quando se cruzava com ele na escada estreita, achava graça à maneira saltitante com que descia os degraus. E gostava daquele cheiro fresco a after-shave acabado de aplicar. A bem dizer, até gostava da voz dele a dizer: Faça favor, vizinha, a dar-lhe prioridade na subida.
Andava um pouco irritadiça. Se o marido lho fazia notar, respingava: Manias tuas. Irritadiça, eu? E ia até à janela, a procurar alguma frescura da tarde. Ele conformava-se: Mulheres! Quando estão com os humores…é deixá-las.

(continua)


Licínia Quitério

10.12.07

DESVAIRADAS GENTES (Folhetim)

Fascículo 4º.

Era uma construção que mantinha uma certa dignidade, a apresentar-se orgulhosa no gaveto ensolarado da Calçada, apesar das rachas no reboco, que se adivinhava ter sido pintado de ocre claro, e das janelas de alumínio, que se iam atrevendo a substituir velhos caixilhos de madeira apodrecida pelas muitas invernias e pela falta de manutenção. Rendas agora baixíssimas, como se lamentava o Senhorio, que não davam para mandar pregar um prego. Quem não estivesse bem que se mudasse! Pudera! Um forreta que morava em bela casa própria em Campo de Ourique, com portas pesadíssimas de ferro trabalhado, com elevador e tudo. Parecia mesmo tirada de um filme português, daqueles que a gente não se cansa de ver e em que se percebe tudo. Nada como os de agora que são só p’ra dótores e mesmo esses não acredito que não adormeçam pelo meio. Isto dizia a Dona Rosa, admiradora indefectível da Dona Beatriz Costa e a quem o Senhorio, só de pensar nele, provocava subidas bruscas de tensão.
Quando um cano se rompia e vertia águas para o andar inferior, as discussões entre os inquilinos atingiam foros de raiva transformada em impropérios contra o forreta que nem sequer atendia o telefone. Depois, na ausência do sujeito da culpa, a zanga tomava conta de todo o prédio e nas escadas organizavam-se concílios em que tudo e todos eram atingidos, até o “encanalizador” que não aparecia. Coitado, já lhe pica a cevada na barriga, como protestava a Elvina em voz aflautada pela indignação. O barbeiro passava imperturbável pela turba, sem dizer mais do que um bom-dia anémico, como se tivesse desprezo pela vizinhança. Se fosse na casa dele que a água caísse, a ver se não dizia alguma coisa. Se calhar chamava a polícia e tudo. Isto, homem pequenino… E todos aplaudiam a opinião do inquilino do andar de cima, o Zé Mário, metalúrgico reformado, que sofria horrores com a gota e por isso se agarrava com ambas as mãos ao corrimão para poder trepar aqueles malditos lances de escada, enquanto praguejava entre dentes. O somítico havia de sentir na língua as dores que ele tinha no dedo grande do pé por se negar a mandar consertar aquele maldito degrau que o obrigava a um esforço acrescido para não se afundar no buraco que o caruncho tinha lavrado.

..

No rés-do-chão direito, no mesmo patamar do barbeiro e família, vivia um casal de quarentões, casados há muito, sem filhos. Ele, um pouco curvado, de careca reluzente, invariavelmente com os seus camisões axadrezados. No Inverno, eram de flanela de lã, ou de uma qualquer imitação. No Verão, tinham meia manga e eram de tecido fino, porém um pouco áspero para peles sensíveis como a dele, principalmente quando a temperatura teimava em manter-se acima dos trinta graus na cidade seca e poluída. Nesses dias, antes de ir para casa, ao fim da tarde, entrava no CAFUNÉ e pedia um fino, ao balcão. Não se demorava, apenas o tempo de pagar, limpar um resto de espuma dos beiços com as costas da mão e soltar um ligeiro, contido, arroto de satisfação. Quando saía, já com a chave da porta na mão, havia sempre um circunstante que comentava qualquer coisa brejeira, do tipo: Hoje o Marreco fez uma estravagança. O pior é que, se este dedo não me engana, depois do fino a mulher vai obrigá-lo a dar o litro.

(continua)

Licínia Quitério

29.11.07

DESVAIRADAS GENTES (Folhetim)

Fascículo 3º.

As férias de Verão eram invariavelmente passadas na Terra, assim simplesmente chamada porque o nome da aldeia era qualquer coisa terminada em “ões” que preferia não citar para não se sujeitar a trocadilhos maldosos das colegas da Escola em que era Contínua (um nome estranhíssimo para os desconhecedores das razões da Semântica).
O carro, já com muitos anitos, e sem uma beliscadura, saía da garagem alugada por tuta e meia num barracão pertença da Sociedade Desportiva Recreativa e Cultural Os Amigos do Bom. Iam carregados de geleiras onde transportavam o farnel feito ao serão da véspera da partida e que os alimentaria nas numerosas paragens da viagem. Toalhinha aos quadrados brancos e vermelhos com um “picot” de que a Felismina não ensinava o segredo, loiça e talheres de plástico e sacos do supermercado para o lixo sobrante. Que não eram como esses ordinários que deixam os recantos das bermas cheios de ossos de frango e de cascas de melão. Além de lhes sair muito mais económico, o farnel livrava-os de se sujeitarem a comer porcarias servidas em restaurantes em que, já tinham ouvido falar, os restos dos pratos voltavam à mesa transformados em croquetes. Isto já para não falar do gato, gato mesmo, servido por coelho. Uma nojice, carago!
Quanto não valiam os produtos da Terra, tudo ainda sem químicos, que só provocam doenças, Olha a Marcela que ficou que nem um bicho, salvo seja, depois de comer aqueles morangos em Maio do ano passado. Não, lá era tudo semeado e colhido em tempo próprio por quem conhecia como as palmas da mão as leis e os caprichos da Natureza. Gente temente a Deus, está visto, a quem não se tinham pegado os vícios da Cidade que, lá isso tinham de confessar, era lugar para se juntar algum dinheirito, desde que houvesse boa cabeça e mão de ferro com as crianças para não cairem em tentações que era o que mais se via por aí. Que Deus nos defenda!, a Felismina dizia, enquanto beijava o Bentinho Doutor Sousa Martins que sempre trazia pendurado no fio de prata, juntamente com o crucifixo que a prima Maria do Sacramento lhe tinha trazido da excursão à Terra Santa, promovida pelo senhor Padre Francisco, um santo homem que, por um preço insignificante, lhes servira de guia e ainda por cima tinha ajudado a transportar ao hospital a Maria das Poças que em má hora torcera um artelho que começara a inchar e a arroxear, mas que, com a graça de Deus, não foi mais nada de cuidado. Apenas teve de ser transportada durante os dias que faltavam para o fim da viagem, em cadeirinhas improvisadas pelos braços fortes e peludos dos irmãos Videirinha. Coitados, não admira que, num desabafo, quando enfim deixaram em casa a Maria das Poças, um deles tivesse deixado escapar E agora veja lá se começa a comer menos, que Vossemecê pesa mais que a porca do Manel da Eira, com sua licença!

..


O prédio, quase em frente ao “CAFUNÉ”, era velhote mas simpático. Três pisos apenas, uma das caves com janelinhas a roçar o passeio, por via da inclinação da Calçada, de tal forma que a Dona Rosa, com as artroses a fazerem ranger as cervicais, impedida de esticar o pescoço, só via da cintura para baixo quem passava junto das janelas. Não era assim tão mau, porquanto dava para estimular a imaginação. Quantas vezes perguntava para com os seus botões Como será este dos coses para cima? Se for de acordo com o que vem para baixo, não seria a Rosa a deitá-lo no lixo. Sonhos a florirem rente à Calçada, como sardinheiras em balcão.


(continua)


Licínia Quitério

21.11.07

DESVAIRADAS GENTES (Folhetim)

Fascículo 2º.

Mas, como os gritos continuavam e encorpavam, acabaram todos por se postarem à beira do passeio falho de paralelipípedos. O Zeca com um pé na calçada, a Dona Amália com o avental dobrado em guardanapo a esconder algumas nódoas. O senhor António assomou à porta, porém sem transpor o degrau, não fosse algum malandreco aproveitar a distracção e, num abrir e fechar de olhos, botar a mão no alheio. E os gritos, agora já palavras perceptíveis Eu tiro-te as tripas, malandro, meu porco sujo. Pela saúde dos meus filhos, juro que a matrafona há-de ficar marcada para o resto da vida.
Bonito. Hoje havia cinema à borla. Mas quem seriam os maus?

..

Todos os membros da família (pai, mãe, filho e filha) eram baixotes, por isso mesmo nomeados na linguagem do bairro os caga-tacos. Barbeiro o pai, de estabelecimento tomado de trespasse há muitos anos, depois que viera da terra no limite nordeste da fronteira galaico-portuguesa. No estendal da marquise, as roldanas chiavam com o desfile diário das toalhas do ofício, impecavelmente brancas, que gente asseada como aquela não havia muita nas redondezas. Os cabelos de toda a família estavam sempre impecáveis, miraculosamente ao abrigo de ventanias ou de gestos bruscos que os tirassem do lugar pré-determinado. O filho, conhecido por o puto do barbeiro, era uma reprodução exacta do pai, tanto nas feições como na postura e, naturalmente, no penteado, apenas com uma poupinha um pouco mais elevada como marca da sua menoridade.
Era uma família tranquila, pouco ao jeito do bairro que gostava de alguns desalinhos, da sua marca de desordem controlada. Saíam e entravam sempre a horas certas. A mãe usava com garbo as arrecadas que lhe vinham do bragal. A vizinha do prédio contíguo era a que dialogava com ela mais assiduamente. A Natália vesga tinha na Felismina uma ouvinte pouco faladora que satisfazia plenamente a sua necessidade de debitar palavras em catadupa, enquanto lavava com a mangueira de plástico o terraço do rés-do-chão para onde as porcas lá de cima atiravam toda a casta de merda. As porcas arredavam a medo as cortinas e retiravam-se de pronto, porque não tinham vocabulário para a troca, nem físico que aguentasse um chapadão daquelas mãos habituadas a limpezas pesadas. Só o talho do Feliciano, para arrancar os vestígios de toda aquela carniça, a obrigava a esforços que nenhuma das donas fúfias aguentaria sem um chilique e uma baixa à enfermaria. E a conversa desfiava-se a competir com os latidos e saltos autistas do cão enlouquecido pelos jorros de água da mangueira. Uma vez estendida a roupa e varrido o quintal das folhas secas da nespereira, a Felismina retirava-se com um Até logo vizinha sem um ritus que denunciasse estado de alma, por muito pobrezinho que fosse. Era uma mulher de cara-de-pau, passada dos quarenta, ainda com alguma elegância de formas, contida pela rigidez que lhe haviam ensinado ser indispensável para a defesa da honra de uma mulher que não quer ser confundida com uma galdéria. Nos tempos que lhe sobravam (a mulheres como a Felismina sobram sempre tempos que preenchem furiosamente), fazia rendas e bordados em quadradinhos de pano que, com pequenos e habilidosos esticões, obrigava a terem ângulos precisos de noventa graus. Os quadradinhos iam-se juntando, em fiadas a que outras se casavam, e assim iam nascendo toalhas de mesa (duas delas davam mesmo para doze pessoas) que, depois de lavadas e engomadas, tomariam lugar nas duas arcas de madeira envernizada, cravejadas de tachas amarelas, compradas na feira do Relógio. Preço bem discutido Por esse dinheiro compro eu três ali abaixo. Venha cá senhora que eu não engano ninguém. Pela minha saúde que prefiro não ganhar dinheiro nenhum e estrear-me hoje com uma freguesa tão simpática. Deixe-se de cantigas e guarde lá as gabarolices para a sua mulher. Prontos, freguesa, não se zangue que o cigano só quer servir bem o cliente. E gritava Olha as arcas de macacaúba! Venham ver que pr’a semana não venho. Olha as arcas! É pessoal, esta querida já vai levar três. Venham ver! Não foram três, como dizia o vigarista, mas duas e não se arrependera do negócio até encontrar outras iguaizinhas, na feira da Terra, por quase metade do preço. Olhem, que fique para desconto dos meus pecados, e que o cigano arda nos infernos mais a trupe dele.

(continua)


Licínia Quitério

14.11.07

DESVAIRADAS GENTES (Folhetim)

Fascículo 1º.

Traz lugar? Perguntou o homúnculo por detrás do balcão, por debaixo dos capachos e dos mata-moscas pendentes do tecto, entalado entre os grandes frascos de rebuçados e a pirâmide multicolor dos alguidares de plástico. Ao silêncio de incompreensão do cliente, repetia aparentemente agastado Traz lugar ou precisa de um saco? É que temos poucos. Assim se falava na Drogaria Moderna, de João Cipriano (Herd.os), Lda., mais conhecida no bairro pelo Tem-Tudo. Fica numa dobra de velha Calçada de Lisboa, sinuosa como a história da própria Cidade, povoada de pequenas lojas que, tal como o Tem-Tudo, resistem, não se sabe bem como, à avalanche inexorável das novas modas.
Gritos de mulher, onde era notória a rouquidão da raiva, ouviram-se no Tem-Tudo, nesse princípio de tarde de Primavera. Os clientes, três na ocasião, viraram em sintonia as cabeças para a porta e entreolharam-se numa mudez que, se soasse, diria O que será?. Só o Senhor António continuou, imperturbável, a pesar a goma, nem um grama a mais, o olho assestado no fiel da balança, o cotovelo direito alçado, a manter o ritmo lento da saída das pedrinhas brancas do frasco com rolha de esmeril.
O Senhor Amaral, que tinha a banca do Totobola e de outros jogos da Santa Casa, tudo muito legal, nada de trafulhices, instalada em espaço sub-alugado na entrada do Café, Snack-bar e Churrascaria CAFUNÉ (nome aprendido em telenovela brasileira) exclamou Ó Diacho! e encaminhou-se para a porta estreita e atafulhada de mercadoria, a não permitir passagem a mais do que uma pessoa de cada vez. Postou-se no passeio, pôs a cabeça de lado, a aproveitar o seu melhor ouvido, o direito, que o esquerdo devia andar atascado de cerume, a avaliar pelos sons que lhe fazia chegar como se viessem do fundo de caixa de cartão com tampa, acompanhados de ressonâncias e tudo. Já muitas novidades sobre a vizinhança lhe tinham escapado por via daquela orelha meio mouca.
A Dona Amália, que vendia queques para fora, receita da sua falecida mãe, uma delícia, a desfazerem-se na boca, viera ao Tem-Tudo por para comprar um rapa-tachos novo, que o velho já cumprira bem a sua obrigação, mas agora, de tão gasto, largava pedacinhos de borracha que poderiam misturar-se na massa e estragar-lhe o negócio que tanto jeito lhe dava para ajudar o neto. De há uns tempos a esta parte, ele não parava de lhe pedir ajuda para comprar gasolina para a moto que deixara de arrumar à beira do passeio, alegando ter encontrado estacionamento mais seguro. Onde? Ali atrás! E alongava o braço, num movimento impreciso, enquanto fungava. Sempre constipado. E magrito. Uma ralação, este miúdo.
Só o Zeca, filho da Dona Antónia da tabacaria que falava duas oitavas acima, de modo a fazer-se ouvir ao longo da Calçada sempre que dizia Bom Diiia!, só ele ignorou o alarido e aproveitou para ser de pronto atendido. Fósforos, uma caixa. Das grandes ou das pequenas? O Zeca coçou a orelha, ou antes, torceu-a e atirou Sei lá. A minha mãe não disse. Então levas das grandes. Se não for, diz à tua mãe que eu destroco. Isto é preciso uma paciência! Tá bem, prontos. Saiu com as mãos nos bolsos dos calções, a fazer salientar o traseiro gorducho que era frequente motivo de implicâncias dos adultos que atiravam inconveniências como Que grande padaria! ou Para que queres um cu tão grande?. Mas o Zeca tinha uma fórmula mágica para lhes acabar com a gozação É para cagar!. E seguia o seu caminho, expelindo o sopro com que melhor conseguia imitar um assobio. Depois de breve silêncio, algum dos crescidos desabafava O cabrão do puto é mesmo malcriado! Onde é que se viu um fedelho ganhar às palavras com um homem? Já não há respeito como antigamente, é o que é.

(continua)


Licínia Quitério

7.11.07

HÁ DIAS ASSIM

Ele há dias assim. Tudo corre mal. Foi aquela dor no pescoço. Só dei por ela quando acordei estremunhado com o plim-plim, plim-plim da campainha da porta. Sem parar, a malvada. Levantei-me de um salto, pus os pés no tapete e não é que não consegui virar a cabeça sem soltar um grito? Uma dor áspera, antipática. E a campainha plim-plim, plim-plim. Agastado, de pescoço ao lado, espreitei pelo visor da porta. Um rosto feminino, jovem, de óculos de aros azuis. Deformado pelo vidro, fazia lembrar aquelas imagens no espelhado convexo dos antigos bules cromados. Compus o pijama, abri apenas uma nesga da porta. A jovem adiantou um passo e as pontas dos nossos pés quase se tocaram. ”Muito bom dia!”, disse. “Bom dia. Que deseja?”. “O meu nome é Sandra Santos. Pode dar-me um minuto de atenção?”. Empunhava uma esferográfica assestada a uns papéis que se desdobravam sobre uma pasta rígida. Sem me dar tempo a responder, disparou: “Tem telefone?”. E eu, de pescoço ao lado, demorando a responder. “Tem telefone?”, insistiu. “Preciso saber. No seu interesse.”. Recuei. “Faça favor de entrar.”. Ela avançou, os olhos em relance pelo hall. “Já vejo que tem.”. O cão irrompeu pela casa e desatou a ladrar. “Hoje não está sociável, o Poker. Quieto, Poker, quieto!”. Lá se sentou, rosnando. A jovem manteve-se imperturbável, elegante na sua gabardina com gola de pele sintética. Apenas deu um toque de circunstância a ajeitar uma haste dos óculos, quando o Poker ameaçou abocanhar-lhe o cano enrugado de uma das botas. Mas continuou. “Quantas pessoas utilizam este telefone? Quanto gasta em média por mês em chamadas? Não gostaria de poder falar mais e pagar muito menos?”. E eu, de pescoço hirto, respondendo em monossílabos, um olho no Poker o outro no pijama de uma justeza inconveniente. E eu já sem a ouvir, nem ao rosnado do Poker, nem ao martelo pneumático que começara a função nas obras do passeio em frente. E a jovem também martelando sons em que eu não encontrava nexo. E a dor no pescoço, a cada tentativa de torsão, intensa, agreste. Num rompante, pôs-me a esferográfica na mão e eu percebi, mesmo sem ouvir, ela dizer: “Assine aqui.”. E apontou-me o dossier, como uma faca. A dor no pescoço agudizou-se. Senti a fúria tomar conta de mim. “Nem pense!”, disse. “Não assino nada. Não quero pagar menos do que pago. E nem sequer tenho telefone. Aquilo que ali vê é de plástico. O brinquedo preferido do Poker.”. Foi a vez de ela recuar. Pareceu-me enfim feita de carne e osso. “Não entendo…”, disse. “Pois não.”, disse eu. Encaminhei-a para a saída. Fechei a porta com demasiada força. O telefone tocou. Fui atender. Uma voz masculina, do outro lado: “O meu nome é Marco Santos. Tenho umas perguntinhas para lhe fazer. No seu interesse.”. Soltei o meu palavrão preferido seguido de "eu não tenho telefone" e desliguei. Há dias em que tudo corre mal.
“Senta, Poker, senta! Cão maluco…”.


FIM


Licínia Quitério

31.10.07

ZÉ NETO

O seu nome? O seu nome? O Zé Neto emite sempre um duplicado das suas frases. Pediu-me um cigarro, um cigarro. E lume, e lume. Só depois me perguntou o nome. Maria, disse. Virou-se para os poucos circunstantes, o cigarro aceso entre o dedo médio e o anelar e anunciou, na voz volumosa e rouca: O nome oficial é Maria. Maria o nome oficial. Ninguém o ouviu. Também ninguém o olhou.
Um destes dias, encontrou-me numa loja e disse: Iogurte, iogurte. Acompanhou-me ao expositor e, antes que lhe perguntasse, apontou com os dedos grossos e sujos, peremptório: Destes, destes. Por entre a profusão de marcas que me confunde, O Zé Neto sabe o que quer.
Quando os demónios o atormentam, grita ou canta. Sabe estribilhos de canções e repete-os. Por vezes, cria as suas próprias letras. Tão loucas como as de qualquer poeta em confusão.
Zanga-se muito. Só ele saberá com quem. É quando solta palavrões, alto e bom som, em duplicado, em triplicado, tantas vezes quantas a raiva o exigir. Como qualquer de nós gostaria de fazer.
O Zé Neto tem sempre muito calor. Há dias em que não suporta a roupa e se despe. Chega a ficar só com as cuecas. Claro que escandaliza as pessoas de bem. O Zé Neto não sabe que não é um jovem atlético e que a rua da vila não é uma “passerelle”.
Já o tenho visto dançar. Nas ancas tem ritmo de “twist” e os braços ensaiam figuras de ginástica aeróbica. De fazer inveja a muito pé-de-chumbo que por aí anda.
Devo dizer que nem sempre é assim destrambelhado e exuberante. Hoje encontrei-o sentado numa esplanada, de perna traçada, recostado, com um cigarro apagado entre os dedos. Tem lume? Tem lume? e nem sequer destraçou a perna. Cheguei-lhe o isqueiro. Aspirou fortemente, repetidamente. Entre duas fumaças, atirou: Obrigado, obrigado.

Há dias em que o invejo. Tão livre, tão livre.
É doida, é doida.


Licínia Quitério

24.10.07

SÓ COM PPPP'S

Porquê? Perguntava Paulina perscrutando pensativamente paragens passadas.
Para Paulina poucas perguntas podiam proporcionar pretensas pacificações.
Pássaros perspicazes picavam pesadas pernadas pendentes. Pitonisas principiantes?
Perfumes penetrantes passeavam por paisagens primitivas. Profecias provisórias?
Persistente, Paulina perguntava: Porquê?
Palavra pequenina, penitente, patética, pungente.
Preâmbulo para provocações, petulâncias, pretensiosismos, presunções.
Paulina, pálida, preocupadamente perguntando porquê, palmilhando percursos pedregosos previamente percorridos.
Palpitações passageiras preclaramente pressagiando picantes paixões platónicas. Perigoso patamar, porventura perspectivando protestos, polémicas, porfias.
Perante precipícios próximos pensava parar. Prosseguia perante pontes pênseis.
Progredia, perseverante, pujante, principal, personificando parede pétrea perambulando por planuras ponteadas por papoilas, pirilampos.
Porquê? Persistia perguntando, pacientemente.
Perdoara perfídias, pilhagens, perjúrios.
Partilhara prelúdios, primícias, primores.
Perdera praias, penínsulas, prados, pomares, planetas poeirentos, poemas peregrinos.
Penetrara profundos pélagos, pastosos pântanos, pacíficos palmares. Pegara pingos pluviais para pintar pérolas, pincelando ponto por ponto.
Prodigamente pagara penosas promessas para pacificar prováveis pecadores.
Proporcionara prazeres precários, portanto perfeitos privilégios.
Prenunciara prematuras primaveras, primorosamente plantando prímulas, perpétuas, pervincas, petúnias.
Paulina padecendo provações, pesadelos, parindo prementes preocupações, perfilando premonições.
Para Paulina, palácios prateados parecem possíveis penúrias, previsíveis perdições.
Paulina pronuncia primordial paulatinamente parecendo pressentir penumbras.
Paulina perante pavorosas procelas, programadas perversidades, proclamadas pelejas.
Por Paulina passaram plácidos príncipes, prosaicos poetas, poéticos prosadores, pressurosos pregadores. Porém parcos pensadores.
Paulina paladina, perplexa, pasmada, perturbada, pesarosa, perguntando: Porquê? Porque partiste?
Precocemente. Perpetuamente. Provavelmente.
Pobre Paulina, pomba perdida piando por plúmbeas penas.
FIM

P.S. Diverti-me muito a fazer este exercício de escrita.
Podia prosseguir, podia. Pareceria, provavelmente, pedantismo, patetice. Parei, por precaução.

Licínia Quitério

16.10.07

A FAMÍLIA

Senhor Alves Garcia subiu a calçada inclinada.
Dona Teresa Garcia levantou a mesa, cansada.
Menino João afagou o cão e desceu a escada.
Menina Celeste acenou ao avô que bocejou.
Senhor Alves Garcia chegou ao emprego, puxou a cadeira e sentou.
Menino João foi para a escola aprender a lição.
Menina Celeste atendeu a chamada e saiu apressada.
Dona Teresa Garcia não olhou o avô, não fez festa no cão, abriu a janela e saltou.

FIM

Licínia Quitério

12.10.07

"HÁ QUE RESISTIR!" (parte 3)

Em temas como este, tinha dificuldade em manter a calma. Revoltas insanadas vinham à tona e faziam-no limpar repetidamente os cantos da boca com o lenço, como sempre fazem os velhos. Quase esquecera o que queria contar, mas depressa retomava a narrativa.
O rancho, a comida da soldadesca, talvez por ser tão má, sobrava sempre. Em vez de a deitarem no lixo, decidiram as altas instâncias, sempre generosas, que as crianças pobres podiam vir buscar os restos, “se quiserem, que há muita ingratidão nessa gente”, como diria o senhor Administrador, dono civil da Terra e das gentes. Quiseram, claro, que barriga vazia não escolhe pitéu. Era vê-los, os miúdos mais pobres, em magotes, organizados, pé descalço, batendo nas latas, que serviam de tacho, com as colheres, cada vez mais retorcidas, imitando os rufos dos tambores do exército de cujas sobras faziam, quantos dias, a única refeição.
Da filha, falava sempre com ar enlevado. Fora uma aluna brilhante, compreendera cedo os mecanismos da injustiça social. Dirigente estudantil, escapara da prisão por uma unha negra. Com ela não falava de política. Não era preciso. Sabia que estariam sempre do mesmo lado. Quando veio a festa da Liberdade, desfilaram nas ruas, lado a lado, entoando canções há muito sabidas, de esperança e despertar. Mais do que Pai e Filha, dois Irmãos de sangue e de luta. As lágrimas rolaram-lhe pelas faces, abundantes, imparáveis. Um Homem não chora? Quem disse? Todo o Homem chora quando a Felicidade o agarra pela garganta. Nesses momentos raros, perde a fala e ganha o choro.

Há dias que não aparecia no café, depois do almoço, onde o esperavam, na mesa do costume, a bica e o bagacinho a estalar entre a língua e o palato. Estranharam a ausência. Foi averiguado o que teria acontecido ao velhadas, tão quezilento quanto amigo do seu amigo. Depressa se soube. O neto mais velho, filho da filha, para ele ainda um menino, apesar da barbicha a emoldurar-lhe o rosto fino, fora apanhado nas malhas viscosas da droga. Como clímax de um caminho de sombras há longo tempo percorrido, estava preso “por tráfico e consumo”, tout-court. Tinham andado a esconder-lhe a verdade que agora o aguilhoava em cheio, em pleno peito. Todos tentaram acalmá-lo. Em vão. Revolvia-se na cadeira e dizia, com os olhos aflitos, muito abertos: “Corja de assassinos! Sempre o dinheiro a encher-lhes o cu! Vampiros, a sugarem o meu Menino!”. Cantarolava, em toada lamentosa: “Eles comem tudo, eles comem tudo…”. A filha, em estátua de dor, afagava-lhe as mãos, frias, arroxeadas. A ferroada no peito era cada vez mais forte. A alargar-se para os braços, em cruz, insuportável. Levaram-no para a urgência do hospital, onde chegou, como disseram os técnicos, “já cadáver”.
O caixão foi coberto pela bandeira do Partido em cujas causas acreditara e pelas quais lutara toda uma longa vida. Na casa mortuária, uma velhota benzia-se e rezava-lhe por alma. Como ele se devia rir, lá dentro, já sem perseguições nem decepções. Por certo, não perderia a oportunidade para uma boa imprecação: “Coitada, não é má mulher, mas sempre foi muito burra. Talvez ainda vá parar ao Governo! Quem sabe? Como as coisas estão, não é de admirar!”. Poder-se-ia afirmar que uma risada mais forte, que não pudera conter, fora responsável por um levíssimo estremecimento dum cravo vermelho que lhe depuseram sobre o vulto das mãos convenientemente sobrepostas.
Homens como ele têm funerais breves e não constarão nunca da toponímia das suas Terras.
Há que resistir!

FIM
Licínia Quitério

9.10.07

"HÁ QUE RESISTIR!" (parte 2)

Porque eram considerados homens em quem a Pátria não podia confiar, os empregos públicos eram-lhes vedados ou eram deles expulsos, sem apelo nem agravo. Como não tivera a mesquinhez e a avareza indispensáveis para, na esteira dos corruptos, fazer engrossar capitais, do trespasse da loja, quando as forças começaram a faltar, ficou-lhe pequena maquia, devorada por inflações galopantes e mecanismos impiedosos das novas economias mundiais.
Os dois filhos tinham há muito deixado a casa e partido por aí fora, moldando-se na vida e fazendo filhos que o tornaram avô. “Coitadinhos”, dizia dos netos, “nasceram num país livre. Só por isto, tudo valeu a pena. Agora, vai ser com eles”.
O filho mais novo, um senhor professor, aprendera a andar no pátio da prisão. Nunca haveria de esquecer aquela tarde de Domingo em que a visita da companheira e do filho fora autorizada. Era fim de Outono e um céu pardacento, prenunciador de tristezas de Inverno, permitia que no pátio cor de cinza entrasse enviezada uma réstea de Sol. Entre ele e a mulher já caía o silêncio da despedida. Que haviam de dizer? Os olhares dos guardas não encorajavam palavras grandes e sonoras. Apenas murmúrios, síncopes que não chegavam a ser conversa de vivos. Foi então que o pequeno, farto de rastejar, com uma perna debaixo do rabito, se agarrou a uma grade do portão, se desdobrou, se empinou, rodou o tronco, levantou a custo os dois bracitos, pôs um pé afastado do outro, depois fez vir para a frente o que estava atrasado, repetiu o esforço e, num grito que parecia uma gargalhada, caminhou, cambaleante, mas erecto. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. Naquele pátio onde tentavam dobrar homens feitos, um novo homem acabara de se erguer, pronto para olhar o mundo de frente. Fungava, quando falava disto.” Esta maldita humidade já está a constipar-me”.
Adorava conversar com os mais novos, perguntar-lhes opiniões sobre o mundo que aí estava, com todas as suas grandezas e misérias, mas também, era preciso não esquecer, com os grandes avanços da ciência, que admirava, atribuindo-lhes a classificação de “formidável”, palavra que, dita em tom cavo, com os olhos a varrer os ares, significava nota superlativa.
Quando o assunto vinha a propósito, relatava os tempos de miséria, não tanto da que passara por ele, mas da que vira morder nos outros. Por vezes, reparava em alguma incredulidade mal disfarçada nos olhos dos jovens, quando se referia ao que nos velhos tempos se comia ou, melhor dito, ao que se não comia: à sardinha para dois ou para três, ao pão com azeitonas, apanhadas do chão, à fruta roubada nos quintais, com fintas ardilosas a cães e a criados. Lembrava, ainda com dor, os pobres de pedir, só autorizados pelas autoridades municipais a fazê-lo aos Sábados, para não perturbarem demasiado as pessoas com vidas decentes que, durante a semana, guardavam as moedas mais pequeninas para distribuir aos pobrezinhos. Eram velhos, aleijados, ou ambas as coisas, e murmuravam “que Deus lhe pague”, do lado de fora da porta, para não contaminarem a casa com os maus cheiros e os bichos que transportavam. Contava dos amigos, mais desafortunados do que ele, que “iam ao rancho”. Tinha de explicar o significado da frase. Na terra havia dois quartéis, onde sucessivas revoadas de mancebos, vindos de todo o país, cumpriam o serviço militar que, segundo ideias muito propagandeadas na época, contribuía para fazer deles uns Homens, com H grande. O H não seria tão grande como isso, mas o certo é que, para muitos desses jovens, vir para soldado significava ter pela primeira vez um par de botas, uma manta na cama sem ser em farrapos e várias refeições por dia. Faziam-lhes acreditar que todas as agruras e humilhações por que passariam faziam parte do seu crescimento como fiéis servidores da Pátria que jurariam defender, perante a Bandeira, “até à última gota de sangue”. Mal sabiam, muitos deles, que tal lhes iria, literalmente, acontecer, sem que alguém lhes tivesse explicado verdadeiramente porquê e para quê. “Ah!, a malvada da guerra que só serve para encher o cu dos grandes pulhas e usar a juventude como carne para canhão!".

(continua)

Licínia Quitério

8.10.07

O LENÇO

Trazia um jornal desportivo dobrado debaixo do braço. Baixote, franzino, poderia parecer mais novo, não fora aquele desalento nos cantos da boca que o bigode grisalho não lograva esconder. Teve dificuldade em fazer rodar o manípulo da porta do café, o que indiciava não ser frequentador habitual. Com olhar rápido, avaliou qual das mesas disponíveis lhe seria mais conveniente. Escolheu a do canto, longe da entrada e do balcão. Mal ele se sentou, a D. Mimi, sempre atenta aos circunstantes, disse para as amigas: ” Parece uma pessoa tímida. Nunca o vi por aqui.” Pelo sim, pelo não, cruzou as pernas com a possível elegância, enquanto se abanava com o leque dos cinquenta anos sem substituição hormonal. Por momentos, abrandou a tagarelice do grupo de senhoras, unidas teimosamente por pequenas intrigas, a disfarçar solidões.
O recém-chegado fez sinal discreto ao empregado e pediu com voz cava de alguma bronquite persistente: “Uma bica bem cheia.” Foi então que a D. Ester, que estivera muito interessada a ler a notícia do divórcio da princesa que gosta de domadores de leões, deu um salto na cadeira. Aquela voz… Virou-se para a mesa de onde ela vinha e quase gritou: “Arnaldo!” O senhor teve um pequeno estremecimento na mão que virava a folha do jornal, olhou a senhora que já se dirigia para a sua mesa e disse: “Perdão, minha senhora. O meu nome é Gregório. Ao seu dispor.” A D. Ester, com cara de quem se depara com um fantasma, conseguiu dominar-se, recuou, apoiou a mão nas costas da cadeira e atirou: “Queira desculpar. Confundi o senhor com outra pessoa.”
O grupo levou um tempo a recuperar a estabilidade. Foi preciso rearrumar cadeiras, rodar chávenas. “ Então, Ester? Um engano qualquer tem.” Ester só murmurava: “A voz, a voz, ia jurar. Pois. Já lá vão tantos anos.” Gregório tomou a bica depressa, folheou distraidamente o jornal e pôs uma moeda sobre a mesa. Fez menção de se levantar, mas antes tirou o lenço do bolso e limpou o desalento dos cantos da boca. Já a caminho da porta, meticulosamente, dobrou-o e tornou a pô-lo no bolso. Saiu sem olhar a mesa das senhoras.
À D. Mimi não há pormenor que lhe escape. O lenço era branco e tinha um A acinzentado num dos cantos. O grupo iria continuar coeso, alimentado por mais uma intriga miudinha. "Então, Ester? Não penses mais nisso

FIM

Licínia Quitério

1.10.07

"HÁ QUE RESISTIR!"

“Há que resistir!”, respondia invariavelmente a quem lhe atirava o habitual “Como vai isso?”. Firmava a bengala no chão, a evidenciar algumas sobras de vitalidade, abria quanto podia os olhos esverdeados, agora enevoados pela poeira do muito tempo vivido, e repetia, com a voz já a quebrar na dentadura que oscilava: “Há que resistir!”. Se o ouvinte era “da cor”, puxava conversa: “Isto está cada vez pior. E andaram aqueles homens a lutar tanto. Já não há homens assim.” Referia-se aos seus ídolos, aos que sofreram por resistir à opressão. Falava deles com espanto, com comoção, com afecto. Pobre, como sempre fora, continuava fiel aos princípios. Tinha, porém, ainda a lucidez suficiente para constatar como o mundo entretanto tinha mudado e as gentes com ele, o sentido crítico bastante para falar, em voz mais baixa, dos erros cometidos. A parca reforma, as investidas da morte que não deixava de se fazer anunciar, as decepções perante os caminhos percorridos ao arrepio do que sonhara, não lhe quebravam a verticalidade nem a tentação incontrolável de ajudar os mais fracos. Falava dos “velhinhos”que visitava e a quem levava um cigarrinho. “Qual vício? Qual quê? Um hábito próprio de homens. Já viram algum macaco a fumar? Faz mal. De acordo. Mas ele há coisas que fazem muito pior e de que não se fala. A porcaria toda que passa na televisão, por exemplo!”. Dava passadas miúdas e apressadas pela sala, como se precisasse de chegar, com urgência, a algum lado.
Falava muito dos seus heróis e pouco dele, um bravo resistente que sofrera longas prisões nos anos de chumbo, sem nunca ceder, sem “rachar”. No toca e foge com os “bufos”, gente pequena, soez, vigiando a soldo os movimentos dos homens que os chefes lhes diziam serem perigosos para o bem da Nação, sempre fora de uma arrogância que os desnorteava, dizendo alto e bom som verdades proibidas. Mas, quando as coisas aqueciam e os “senhores agentes” apareciam para a colheita dos resistentes, essa gente miserável, a quem eram dadas fardas e armas, fazia com orgulho o serviço sujo e acompanhava os superiores até junto dos homens inteiros, assistindo ao seu encurralamento em carrinhas que os transportavam para lugares cujos nomes são um ferrete na geração que deles se serviu para a vileza. Chamam-se Aljube, Caxias, Peniche. Chamam-se Tarrafal. Chamam-se Mónicas, Penitenciária. Chamam-se a vergonha de que tanto mal, por tanto tempo, tivesse acontecido.
Também ele foi, mais do que uma vez, nessas carrinhas. Sofreu o que não contava. Que importância tinha o que passara, ao pé do sofrimento dos outros, os que sobreviveram de mente sã ao impensável, os que não resistiram e morreram sem ter denunciado os companheiros, os que foram apanhados num sítio escuso onde um tiro os fez tombar.
Citava, com indisfarçada mágoa, jovens que tinha ajudado tanto quanto podia, nesses anos de míngua em que os pais, que ganhavam misérias, não lhes podiam pagar estudos e que agora arranjavam pretextos para não o visitar, para não lhe darem os dois dedos de conversa que era toda a paga esperada do bem que lhes fizera. Mas não se demorava muito no assunto. “Deixá-lo. Se não me quer ver, também não me faz falta”. Orgulhoso, como sempre. Aproveitara os tempos de clausura para se cultivar. Gostava de ler. Aceitava livros, emprestados. O dinheiro não dava para comprar grande coisa. Fora comerciante, como muitos dos seus camaradas perseguidos e apanhados nas rodas trituradoras do regime fascista.

(continua)

Licínia Quitério

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