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8.10.07

O LENÇO

Trazia um jornal desportivo dobrado debaixo do braço. Baixote, franzino, poderia parecer mais novo, não fora aquele desalento nos cantos da boca que o bigode grisalho não lograva esconder. Teve dificuldade em fazer rodar o manípulo da porta do café, o que indiciava não ser frequentador habitual. Com olhar rápido, avaliou qual das mesas disponíveis lhe seria mais conveniente. Escolheu a do canto, longe da entrada e do balcão. Mal ele se sentou, a D. Mimi, sempre atenta aos circunstantes, disse para as amigas: ” Parece uma pessoa tímida. Nunca o vi por aqui.” Pelo sim, pelo não, cruzou as pernas com a possível elegância, enquanto se abanava com o leque dos cinquenta anos sem substituição hormonal. Por momentos, abrandou a tagarelice do grupo de senhoras, unidas teimosamente por pequenas intrigas, a disfarçar solidões.
O recém-chegado fez sinal discreto ao empregado e pediu com voz cava de alguma bronquite persistente: “Uma bica bem cheia.” Foi então que a D. Ester, que estivera muito interessada a ler a notícia do divórcio da princesa que gosta de domadores de leões, deu um salto na cadeira. Aquela voz… Virou-se para a mesa de onde ela vinha e quase gritou: “Arnaldo!” O senhor teve um pequeno estremecimento na mão que virava a folha do jornal, olhou a senhora que já se dirigia para a sua mesa e disse: “Perdão, minha senhora. O meu nome é Gregório. Ao seu dispor.” A D. Ester, com cara de quem se depara com um fantasma, conseguiu dominar-se, recuou, apoiou a mão nas costas da cadeira e atirou: “Queira desculpar. Confundi o senhor com outra pessoa.”
O grupo levou um tempo a recuperar a estabilidade. Foi preciso rearrumar cadeiras, rodar chávenas. “ Então, Ester? Um engano qualquer tem.” Ester só murmurava: “A voz, a voz, ia jurar. Pois. Já lá vão tantos anos.” Gregório tomou a bica depressa, folheou distraidamente o jornal e pôs uma moeda sobre a mesa. Fez menção de se levantar, mas antes tirou o lenço do bolso e limpou o desalento dos cantos da boca. Já a caminho da porta, meticulosamente, dobrou-o e tornou a pô-lo no bolso. Saiu sem olhar a mesa das senhoras.
À D. Mimi não há pormenor que lhe escape. O lenço era branco e tinha um A acinzentado num dos cantos. O grupo iria continuar coeso, alimentado por mais uma intriga miudinha. "Então, Ester? Não penses mais nisso

FIM

Licínia Quitério

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