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9.10.07

"HÁ QUE RESISTIR!" (parte 2)

Porque eram considerados homens em quem a Pátria não podia confiar, os empregos públicos eram-lhes vedados ou eram deles expulsos, sem apelo nem agravo. Como não tivera a mesquinhez e a avareza indispensáveis para, na esteira dos corruptos, fazer engrossar capitais, do trespasse da loja, quando as forças começaram a faltar, ficou-lhe pequena maquia, devorada por inflações galopantes e mecanismos impiedosos das novas economias mundiais.
Os dois filhos tinham há muito deixado a casa e partido por aí fora, moldando-se na vida e fazendo filhos que o tornaram avô. “Coitadinhos”, dizia dos netos, “nasceram num país livre. Só por isto, tudo valeu a pena. Agora, vai ser com eles”.
O filho mais novo, um senhor professor, aprendera a andar no pátio da prisão. Nunca haveria de esquecer aquela tarde de Domingo em que a visita da companheira e do filho fora autorizada. Era fim de Outono e um céu pardacento, prenunciador de tristezas de Inverno, permitia que no pátio cor de cinza entrasse enviezada uma réstea de Sol. Entre ele e a mulher já caía o silêncio da despedida. Que haviam de dizer? Os olhares dos guardas não encorajavam palavras grandes e sonoras. Apenas murmúrios, síncopes que não chegavam a ser conversa de vivos. Foi então que o pequeno, farto de rastejar, com uma perna debaixo do rabito, se agarrou a uma grade do portão, se desdobrou, se empinou, rodou o tronco, levantou a custo os dois bracitos, pôs um pé afastado do outro, depois fez vir para a frente o que estava atrasado, repetiu o esforço e, num grito que parecia uma gargalhada, caminhou, cambaleante, mas erecto. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. Naquele pátio onde tentavam dobrar homens feitos, um novo homem acabara de se erguer, pronto para olhar o mundo de frente. Fungava, quando falava disto.” Esta maldita humidade já está a constipar-me”.
Adorava conversar com os mais novos, perguntar-lhes opiniões sobre o mundo que aí estava, com todas as suas grandezas e misérias, mas também, era preciso não esquecer, com os grandes avanços da ciência, que admirava, atribuindo-lhes a classificação de “formidável”, palavra que, dita em tom cavo, com os olhos a varrer os ares, significava nota superlativa.
Quando o assunto vinha a propósito, relatava os tempos de miséria, não tanto da que passara por ele, mas da que vira morder nos outros. Por vezes, reparava em alguma incredulidade mal disfarçada nos olhos dos jovens, quando se referia ao que nos velhos tempos se comia ou, melhor dito, ao que se não comia: à sardinha para dois ou para três, ao pão com azeitonas, apanhadas do chão, à fruta roubada nos quintais, com fintas ardilosas a cães e a criados. Lembrava, ainda com dor, os pobres de pedir, só autorizados pelas autoridades municipais a fazê-lo aos Sábados, para não perturbarem demasiado as pessoas com vidas decentes que, durante a semana, guardavam as moedas mais pequeninas para distribuir aos pobrezinhos. Eram velhos, aleijados, ou ambas as coisas, e murmuravam “que Deus lhe pague”, do lado de fora da porta, para não contaminarem a casa com os maus cheiros e os bichos que transportavam. Contava dos amigos, mais desafortunados do que ele, que “iam ao rancho”. Tinha de explicar o significado da frase. Na terra havia dois quartéis, onde sucessivas revoadas de mancebos, vindos de todo o país, cumpriam o serviço militar que, segundo ideias muito propagandeadas na época, contribuía para fazer deles uns Homens, com H grande. O H não seria tão grande como isso, mas o certo é que, para muitos desses jovens, vir para soldado significava ter pela primeira vez um par de botas, uma manta na cama sem ser em farrapos e várias refeições por dia. Faziam-lhes acreditar que todas as agruras e humilhações por que passariam faziam parte do seu crescimento como fiéis servidores da Pátria que jurariam defender, perante a Bandeira, “até à última gota de sangue”. Mal sabiam, muitos deles, que tal lhes iria, literalmente, acontecer, sem que alguém lhes tivesse explicado verdadeiramente porquê e para quê. “Ah!, a malvada da guerra que só serve para encher o cu dos grandes pulhas e usar a juventude como carne para canhão!".

(continua)

Licínia Quitério

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