A Alcina magrinha tinha umas pernas bonitas. Boas,
diziam os olhares dos machos vestidos de azul quando ela descia às oficinas
pela escada de metal, sem espelhos nos degraus. Eram raras as mulheres dos
escritórios que se misturavam com os homens de azul, junto aos guinchos das
máquinas, à estridência das chapas de ferro, ao cheiro a óleos e a tintas.
Alcina ia até lá com os senhores estrangeiros que vinham ver o produto, mirar e
remirar, fazer perguntas, pôr defeitos. Parecia ganhar gosto por aqueles sítios
barulhentos, acres, escorregadios. Falava com os homens de azul e depois com os
senhores da estranja, num leva e traz de palavras trasladadas. Alcina ouvia as
vozes dos homens e aprendia-lhes os olhares envergonhados, zangados. Os
senhores só conheciam a voz e os olhos de Alcina que lhe traziam explicações,
respostas, desculpas por vezes.
Foi num Natal que Alcina desceu, pela primeira vez
sem senhores estranjeiros, ao fundo dos armazéns onde os homens de azul
empilhavam os produtos, o cansaço e a zanga. Um estrado que Alcina julgou um
palco, erguido num dos topos do amplo ventre da máquina de produzir os dias da
raiva e os da fortuna. Os homens de azul chegavam e o cheiro ao seu suor
ansioso perturbava os homens e as mulheres de outras cores que iam descendo as
escadas, vindas das caixas de madeira e vidro onde gastavam os anos, vigilantes
e vigiados. Era outro o cheiro do suor deles, temperado com almíscares de
fancaria, mas tão ansioso como o dos de azul. Paradas as máquinas da máquina grande, era
preciso encher aquele silêncio desesperado com o matraquear de falas, desatadas
em frases retalhadas, decalcadas, incoerentes as mais das vezes. Os homens de
azul tinham vozes grossas e gritavam para se fazerem ouvir contra as vozes
perfurantes, chiantes, batentes, de ritmos e volumes vários, do universo
vulcânico das oficinas. Alcina, magrinha, de perna bonita, sentia-se
entontecida. Seria dos cheiros, das vozes, da luz da manhã em que dançavam
poeiras escuras como aves de mau agoiro.
Dois homens subiram ao estrado que Alcina gostava
de pensar palco. Um deles era baixinho, arredondado, com o cabelo ruço já a
rarear. O outro, grande, a curvar em vénia muito usada, de melena untuosa. Traziam
nos braços cestos de arame luzidio que poisaram numa mesa grande. Os olhos de
todos ficaram por instantes a navegar sobre os cestos, os papéis que tinham
dentro, os desejos. Envelopes,
corrigiu a outra, lendo as palavras ditas pelos olhos de Alcina. Envelopes com
dinheiro. Dinheirinho, disse a outra.
A leve agonia de Alcina encorpou, instalou-se e um friozinho tonto veio humedecer-lhe
as palmas das mãos. Apenas um prólogo da peça a acontecer no estrado, atravessado
pela poalha de luz negra na manhã de inverno. A voz esganiçada, em falsete, do
homem baixinho, picou os ares, os ouvidos, os desejos. Disse um nome de gente
escrito num envelope que tirou de um cesto. Um homem de azul destacou-se do
novelo de murmúrios e dirigiu-se ao estrado, em passo desengonçado, amarrotando
o boné escuro entre os dedos de ambas as mãos. Agarrou o envelope, com a falta
de jeito de mãos que não folheiam, antes prendem. Afastou-se, rasgou-lhe um
pedacito, espreitou para dentro dele, olhou em volta, fechou-o com ambas as
mãos e saiu pelos fundos. Alcina seguiu-lhe os mais pequenos gestos, a tentar
saber o que o homem pensava, o que o homem sentia, o que o homem sabia que ela
não aprendera. Mais um nome gritado pela voz aflautada, mais um envelope a
chegar a mãos desajeitadas, ásperas, enegrecidas. Um a um, o ventre da grande
máquina foi sendo despejado de homens de azul que saíam, silenciosos, pela
abertura dos fundos. Tão distraída Alcina com a sorte dos homens de azul, que
nem deu pelo próprio nome, enfiado na voz esganiçada do homem baixinho
empoleirado no estrado. És tu, disse
a outra. Despertou e lá foi, de perna bonita, subir ao estrado, receber o
envelope que lhe estendiam. Regressou, sem o abrir, sem falar. Um pequeno grupo
de homens de azul esperava, olhos fitos no estrado, ouvidos atentos à voz de
flauta. A chamada continuava, chegavam os envelopes ao fim, e o grupo quase
imóvel, continuava intacto. Alcina demorou-se, quis saber o final do ato,
encostou-se a uma parede, esquecida do seu envelope, atenta ao grupo de azul
que sobrava. A outra disse: vamos, estás
à espera de quê, para o ano há mais. Aquela poalha por entre a luz da manhã
a fazer-lhe semicerrar os olhos. O grupo sobrante a sair pelos fundos, sem
envelopes, sem pressa, sem desejo. Alcina magrinha a murmurar: não gosto, não gosto. A outra a dizer: depois habituas-te.
Alcina gordinha, velhota, de perna cansada, sem se
habituar: não gosto, não gosto.
FIM
Licínia Quitério