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30.12.14

ANO NOVO


De esperar se faz a vida. Ainda que digamos que nada esperamos, sempre uma gavetinha permanece, entreaberta, para algum átomo de novidade, algum passageiro furtivo, algum desejo inconfessado e finalmente satisfeito, algum dia mais, com mais cor, mais sabor. Habituámo-nos a ter dentro de nós um calendário que referimos com desdém, mas sem o qual nos sentiríamos perdidos do tempo único que é o da nossa estadia neste mundo, que dizemos real, já que da virtualidade só o nome, inventado, conhecemos. 
Assim chegámos ao fim do ano catorze do século vinte e um desta era por que se vem regendo grande parte da humanidade. Tudo convenções, não mais, fronteiras, direi, a assinalarem o curso das nossas vidas, tão curtas vidas se medidas pela enorme idade do universo, tão longas se apurarmos a soma das alegrias e das tristezas, dos encontros e desencontros, dos sonos e das vigílias.
De esperar, pois, se fará a nossa caminhada no novo ano que começa, um pé na infância que persiste, outro no amanhã que não sabemos, porque do hoje não se faz notícia, porque instante, porque breve, porque nada.

Licínia Quitério

28.12.14

UM CONTO DE NATAL



Ela sempre começava assim: 
“Pensava que fosses tu e foi por isso que não reagi mais depressa. A mala a fugir-me do ombro, eu a voltar-me e não eras tu”. 
Ele sempre replicava: 
“Porque é que havia de ser eu?” 
E enfastiado: 
“E se fosse por que raio ia puxar-te a mala?” 
Nesse ponto da conversa, ela continuava e ele ouvia, ou não ouvia, que era mais habitual abrir o jornal, por os óculos e limitar-se a pontuar o monólogo com ”hum hum”, “ham ham”, mais espaçados à medida que a fala avançava. Ela parecia não se importar, sentava-se, cruzava as pernas e entusiasmava-se a contar pela milésima vez o que lhe acontecera naquele ano, uns dias antes do Natal. Nessa altura, já não era ele que ali estava, molengão, desinteressado, a puxar por cigarro após cigarro. O outro olhava-a atentamente, seguia-lhe os gestos, bem expressiva a achava e ainda atraente, as rugas aos cantos dos olhos a darem-lhe um encanto de fruta madura. A expressão do outro, o interesse do outro, a graça com que o outro ajeitava a melena, inspiravam-lhe o conto que o Natal lhe trouxera, há uns anos, ao ser surpreendida pelo meliante que lhe sacou a mala e a deixou de mãos vazias, assustada, a gritar, sim, a gritar, a plenos pulmões, que o agarrassem, que era ladrão, que era ladrão, sem que ninguém se aproximasse. Nem imaginavam como se sentira só e desamparada, sem nada na mão, uma mulher sem uma mala na mão é como se estivesse despida. Aí ele costumava dizer “pois”, e virava a página do jornal. O outro tinha um sorriso maroto, ela fazia de conta que não notava e continuava. Quando conseguiu chegar à esquadra, muito afogueada, a contar em catadupa de palavras o que lhe acontecera, vítima de um assalto, ali, senhor guarda, agora mesmo, ninguém acudiu, ali, ao pé do jardim, senhor guarda. Ele interrompia-a, com enfado: 
“Sim, já contaste, o guarda disse para te calares e te sentares e só depois de acalmares começou a tomar nota da ocorrência, não foi?” 
E voltava ao jornal, agora de página dobrada ao meio, a apagar o cigarro. Ela sentia um friozinho no estômago, pensava em calar-se, levantar-se, sair, mas logo o outro a perguntar, já mais perto dela: 
“E então, como foi?” 
Era por isso que arranjava coragem para acabar o seu conto de Natal, a dizer que a mala tinha aparecido, sem dinheiro, claro, mas com os documentos todos, o que já não foi tão mau. Era por isso que não chorava quando ele resmungava:  
“Agora só para o ano é que voltas a contar essa treta, OK?” 
O outro lá estava, a dizer: 
“Tens de me contar tudo outra vez. Com mais pormenores”. 
Ajeitava a melena. O jornal continuava. Ela não saía.


Licínia Quitério

NATAL


O Natal ao Sul, ao Sol, espantosamente colorido e tranquilo. Os campos verdes semeados de flores, o rebanho em sossego, a gaiola esperando os pássaros, as árvores preparando em silêncio as folhas futuras. Que mais desejar depois da festa, dos risos, das longas mesas de muitos pratos? Que um dia assim se prolongasse, à beira das coisas simples, do que vale a pena.

Licínia Quitério

26.12.14

TÁ MAR


A protecção divina invocam, que os mares são férteis de peixe e de tempestade, por vezes só de tempestade, sem que o peixe se tenha oferecido. Se houve um Deus que lhes disse, “ganharás o pão com o suor do teu rosto”, outro não houve, ou o mesmo, que os avisasse, “nas voltas de mar, ganharás o peixe ou perderás a vida”. Dura a faina, feita de saber e arrojo. Em terra ficam as mulheres, esperando pela entrada dos barcos, muitas vezes roucas de tanto rezar, “Salvai-o, Senhor, meu Deus.”, de tanto praguejar, “Ah mar dum cão que me roubaste o meu homem.”.


Licínia Quitério

21.12.14

SOLSTÍCIO DEZEMBRO 2014


O dia de hoje é o mais curto do ano. Amanhã tudo começará de novo a crescer. Assim manda o grande Sol, nossa fonte de vida. Pese embora o frio neste hemisfério, o Sol lá está a comandar o ritmo do Inverno, na dormência das sementes, na ausência dos pássaros migrantes, na insegurança dos homens. Entretanto, convocamos o dia em que de novo diremos Primavera, com a eclosão das sementes, o retorno dos pássaros, a confiança dos homens. Avè, Sol!

Foi assim, eu e ele com a árvore de permeio. Únicas, mágicas, as cores deste tombar do dia.

Licínia Quitério

20.12.14

MANUEL VEIGA



NOTA DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO "POEMAS CATIVOS", DE MANUEL VEIGA

Aqui estou eu, convidada a dizer algumas palavras sobre o livro Poemas Cativos, do meu amigo Herético, que assim foi por mim nomeado durante largo tempo, conhecidos que fomos através do mundo dos blogues, eu no Sítio do Poema e ele com o seu acertadíssimo Relógio de Pêndulo.
Nos primeiros tempos, fui apreciando os seus belos textos em prosa, assertivos, entusiasmados, contundentes, irónicos, esclarecendo, informando, atento sempre não só à espuma dos dias, mas muito mais, à sua conformidade ou inconformidade com os caminhos e descaminhos da Humanidade, dos seus santos e pecadores, para usar expressão tão pouco herética.
Só mais tarde o fui descobrindo poeta que ia publicando, diria, a medo, ou melhor, com o pudor de quem sente a responsabilidade de fazer uso da palavra poética. Foi o seu Relógio de Pêndulo mostrando, mais regularmente, o poeta sensível, a par com o cidadão empenhado e lutador pelas causas que definem, traçam, consolidam o caminho dos homens rumo à Liberdade e à Alegria.
E assim foi crescendo a minha atenção ao Poeta, de seu nome Manuel Veiga, aqui presente hoje como autor do seu primeiro e excelente livro, Poemas Cativos, em boa hora editado pela Poética Editora, graças à Virgínia do Carmo, ela também poeta já publicada.
Tal como afirmei sobre o Eufrázio Filipe, são as palavras de um Poeta a sua mais exacta definição, a sua indelével marca no processo de comunicação mais perigoso, mais difícil, mais subversivo, mais libertador que é a Poesia.
Passo a dar a minha voz, com o maior gosto, a palavras do Manuel Veiga que tocam os domínios do terreal e do sagrado, do concreto e do intangível, e sempre, sempre, as razões do amor e da luta, com a destreza do verbo e o empenho incorrigível deste militante da vida.

Licínia Quitério

Seixal, 7 de Novembro de 2014


EUFRÁZIO FILIPE

NOTA DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO "PRESOS A UM SOPRO DE VENTO", DE EUFRÁZIO FILIPE 

Como dizer a obra de um Poeta, senão com as suas próprias palavras? Tarefa nada fácil para mim que me habituei a lê-lo e as tomei tantas vezes como se minhas fossem. Ponderadas as possíveis abordagens, decidi que o melhor seria pedir emprestados ao Poeta pelo menos alguns dos substantivos e verbos com que tece a malha inconfundível dos seus versos, para tentar explicar como sinto, porque sinto, a sua Poesia. 
Assim vos digo que uma pessoa se depara com um poema de barcos como viagens, e pássaros debicando romãs, e mulheres que são praia, e sabe logo que é do Mar Arável, melhor dito, do Eufrázio Filipe. O poeta deixa a sua marca original por onde passeia o verbo e o oferece generoso à nossa sede de marés vivas.
É uma doçura, uma leveza, que guarda, contra todas as aparências, o amargo dos dias dos homens e das mulheres que os habitam. Poemas de amor e de luta, os dois vectores indissociáveis do seu pensamento, pois que para ele são uma e a mesma coisa. Nos poemas de Eufrázio há aquela pincelada desgrenhada de azul com que marca o seu blog, com que se assinala a si próprio, numa constância de desejo, numa sensualidade que fica sempre um passo aquém do banal erotismo, numa notável contenção de palavras, pois bem sabe o poeta quão preciosa é a síntese, quão difícil de alcançar. Lê-se como se deslizássemos num chão sonhado, de onde se levantam nomes que podem querer dizer escarpa, ou pátria, ou mulher, porque as palavras para Eufrázio são também subversão, alegoria, grito, que só o leitor sensível e desperto pode perceber, pode receber. São de fogo os seus pássaros, são de loiça os seus cães, são de vento os seus barcos que constantemente partem e chegam, e chegam e partem, num rodopio de vida, numa busca inacabada de flores e de brisas, personagens de um drama poético que se desenvolve e envolve o leitor na aventura de sonhar. 
Lê-se Eufrázio como se navegássemos com ele nas tardes e madrugadas dos seus poemas, nos suaves acenos de uma pestana, de uma pena, de uma vírgula, como sinais, como marcos, da viagem dos seus livros que semeia ao ritmo do semeador, com a segurança do caminhante, com o pudor inconfessado do amante. Há silêncio e canto, desespero e esperança, dor e alegria nas suas praias infinitas, nas ondas de saliva ou de espuma, nas romãs que sangram, no alto das ramadas onde se hasteia o beijo.
Poemas que nos interpelam, com o tu que nos faz cúmplices da sua chamada, e nos deixa a pensar quem somos, se somos nós afinal que com o poeta devemos lançar os barcos, acender as escarpas, semear o pão, fazer calar os cães, desgrenhar as asas dos pássaros, soltar a âncora, rumo à praia onde nos espera, para além de todos relâmpagos, a mulher vestida de nudez com que o poeta se entende, se confunde, de seu nome Liberdade.
Obrigada pelas palavras que me emprestaste, Poeta. Aqui tas devolvo para continuares a caminhada, arando o mar como se terra fosse, sem amos nem amarras. 

Licínia Quitério

Seixal, 7 de Novembro de 2014

A NÊSPERA


Era uma vez
uma jovem nêspera,
nascida e crescida
por entre a folhagem
verdinha, fresquinha,
dos ramos ramudos
da grande nespereira,
plantada e criada
no velho quintal
da nossa vizinha
chamada Belinha.
À custa da seiva
da sua mamã,
a nêspera engordou,
cresceu e corou.
Dava gosto vê-la.
Não, nenhuma irmã
tinha a pele assim
tão lisa e suave.
Parecia cetim.
De tanto crescer,
de tanto engordar,
conseguiu espreitar,
sem se debruçar,
por cima dos muros
do velho quintal
da nossa vizinha
chamada Belinha.
E que viu a nêspera
bonita, gordinha?
Do lado de lá,
pousada no chão,
juntinho ao portão,
redonda e amarela,
muito gorduchinha,
uma nêspera bela,
bem maior do que ela.
Uma prima, talvez.
Tamanha foi a surpresa
que se pôs logo a pensar,
a sonhar, a matutar.
O seu destino era lá
ao pé da prima gordinha,
tão forte, tão bonitinha.
Uma nêspera a valer!
Espiou pelo canto do olho
as irmãs enfezaditas,
escondidas, a bem dizer,
naquelas folhas folhudas,
naqueles ramos ramudos
da nespereira do quintal.
Não!
Não tinha nada que ver
com nêsperas descoradas,
talvez mesmo envergonhadas
por não saberem crescer,
encorpar, arredondar,
para que alguém desejasse
trepar os muros de pedra
do simpático quintal
da nossa amiga vizinha
e as poder admirar,
cheirar ou mesmo tocar.
Pensou, pensou, repensou
e chegou à conclusão:
Estava ali por engano.
Foi então que decidiu
mudar de vida de vez.
À custa de um bom esticão,
largou o ramo ramudo
da nespereira folhuda e
sem dizer nada a ninguém,
saltando o muro velhinho,
estatelou-se no chão,
(com a polpa amachucada,
por causa do trambolhão)
junto da prima gordinha
pousada atrás do portão.
Num instante percebeu
o engano em que caíra.
A abóbora gordinha
de nêspera nada tinha.
E o pior aconteceu
quando, num riso de troça,
a abóbora amarela,
muito maior do que ela,
disse, bem alto e bom som,
para que toda a gente ouvisse:
Volta para casa, maluca,
para o pé das tuas irmãs,
antes que se abra o portão,
por ele entre um camião,
trazendo um homenzarrão,
mais feio que muito bicho,
que a mim me transforme em doce
e a ti te jogue no lixo!


Licínia Quitério

18.12.14

A AULA DE MORAL



A aula de Religião e Moral, assim impropriamente chamada, que a religião tratada era só uma e moral era coisa não abordada, era uma das mais divertidas nos meus tempos de liceu, de classes mistas, de ensino privado que na terra não havia outro. O professor era padre católico, pois claro, boa pessoa, mas tremendamente inculto e incapaz de manter disciplina na aula onde, ao contrário do que muita gente hoje presume, já reinava uma balbúrdia colossal a infligir grandes tormentos ao pobre do padre que a eles respondia, regularmente, com chapadões da sua manápula bem fornecida, sem que isso resolvesse o clima anárquico da aula seguinte.
Eu gostava da aula, deliciei-me a ler a versão da Bíblia das Escolas, adorava as histórias do Velho Testamento, as do Novo nem tanto. De vez em quando, o padre projectava uns filmes, creio que em 16 mm, a preto e branco, com a fita sempre a encalhar e a imagem cheia de riscas e luzinhas.  Lembro-me de um deles, sobre o milagre de Fátima, e de outro sobre a Paixão de Cristo e o padre a fazer o relato das imagens, e ninguém a ouvir, que a sala ficava às escuras e a malta aproveitava para comer rebuçados e atirar com os papéis ao ar, os rapazes para apalparem as miúdas da fila da frente que guinchavam, tudo a fingir que ressonava, a darem gargalhadas quando Nosso Senhor era pregado na cruz, e o mais que a imaginação e as feromonas lhes sugeriam. Era uma alegria a aula de moral, como se chamava em abreviatura.
A parte complicada para mim é que, não sendo baptizada, o padre entendeu que era sua missão levar-me à pia baptismal, mas, como para isso tinha de ter autorização do meu Pai, eu passei a ser a mensageira entre o padre e o pai, entre o pai e o padre, o padre diz que, o meu pai diz que.  Convenhamos que para uma miúda de dez ou onze anos não era a tarefa mais conveniente.  Eu queria lá saber se era bom ou mau ser baptizada, eu queria é que os dois adultos me deixassem em paz com a questão. Venceu o meu pai que foi falar com o padre. Eu nunca soube bem como foi a conversa, mas o certo é que deixaram de me encomendar recados.
Ah e fui proibida pelo meu pai de beijar a mão ao padre o que me agradou muito, que aquela mão sapuda me dava alguma repulsa.  O padre, acalmado nos seus ímpetos missionários, deixou de me apoquentar e só de vez em quando passava a mão pela minha cabeça e murmurava: coitadinha, tão boa aluna e não é baptizada.  Lembro-o com alguma ternura e hoje compreendo a sua debilidade perante um homem de fortes convicções como era o meu Pai.


Licínia Quitério

foto da net

14.12.14

O BOLOR



O bolor, o bolor, a insinuar-se, nas máscaras, nos muros, nas falas. Um bolor antigo, travestido, ardiloso, amável, ordeiro, calcário, granítico, multiforme, multíparo. Um bolor consanguíneo, atávico, monstruoso, a avançar no território do sol, a devorar os insones, com suas capas negras, suas cruzes de mil braços, seu fumo de cera ardida, sua colossal mentira. Este é o inverno, o inferno, de vozes doces, de línguas bífidas. Ai dos humanos perdidos em suas dores.

Licínia Quitério

13.12.14

O SABOR DA GELATINA



Foi ao saborear a gelatina não sei de quê, nem perguntei, que me veio o sabor antigo de rebuçados de cinema, os que eram vendidos, antes do filme e nos intervalos, pelo rapaz de casaco branco de sarja, com um tabuleiro pendurado ao pescoço e amparado pelos braços.
Rebuçados de fruta, embrulhados em papel de várias cores conforme o paladar, que a gente desembrulhava durante a exibição do filme, com o ruído estaladiço do papel que depois era atirado ao chão ou, mais ou menos disfarçadamente, sobre a plateia, se calhava  estarmos no balcão. Era o tempo do cinema paraíso, em terra de província, um dos poucos divertimentos que havia. Estratificada que era a sociedade, o cinema era bem o mapa desses estratos, tudo previsto, nada de misturas. A plateia era toda de cadeiras de madeira, daquelas que, ao baixar o assento, e sobretudo ao levantar, faziam um estrépito dos diabos. Nas filas da frente, ficavam os soldados, a gente mais pobre e os rapazes que tinham conseguido um bilhete ou uma borla, ou se tinham aventurado a entrar por uma janela alta das traseiras, sem que os arrumadores, os fiscais, os polícias, os bombeiros, os donos da sala, os tivessem apanhado em prevaricação. Na segunda plateia, as famílias da terra, e um ou outro militar graduado, muito provavelmente sargento. O balcão, de cadeiras estofadas de veludo vermelho, era frequentado pelas famílias mais afortunadas e pelos oficiais de carreira. Na primeira fila, central, sentavam-se as pessoas mesmo muito importantes, mandantes, reverenciadas. 
Quando as luzes se apagavam, a agitação na primeira plateia continuava por minutos e era habitual ouvir assobiadelas, risadas nervosas, palavreado a meia voz, um desassossego de pernas a fazer matraquear os assentos de pau. Sempre alguém, cá de trás, mandava calar os mal educados  lá da frente, e não raro um dos franganotes atrevidos era expulso da sala pelos zeladores da ordem.
Mas o que interessava mesmo era o filme, para não falar dos desenhos animados, isso sim, as gargalhadas a explodirem na incontida alegria. Chato, chato, era o noticiário do país, com o reverendo chefe de estado a cortar fitas, a inaugurar uma barragem pela décima vez, as grandes obras do estado novo, as famílias do estado novo, a esposa do venerando a beijar criancinhas pobres coitadinhas mas protegidas pelo bom governo do senhor presidente do conselho, e a malta a assobiar, ó marreco olha o sonoro, olha a fronha daquele, e chiu, chiu, caluda, que não deixam ouvir nada.
Enfim o filme, o leão a rugir, vesgo, a cabeça para a direita, para a esquerda, oooommm, oooommm, e a malta caladinha. Ah grandes filmes,  com o Errol Flim, o Burte Lencastre, a boazona da Sarita Montiel. Quem não se lembra dos beijos da Sarita que vendia violetas, e a canalha a assobiar, com os mindinhos nos cantos da boca, uma barulheira e tanto. Grandes filmes aqueles, o Ivanhoé, o Tarzan, e os gritos à saída, a baterem no peito, a fazerem que trepavam às árvores da avenida.  E o Bucha e Estica, e o Tótó e o Cantinflas, ah aquilo é que era rir, da primeira à última fila, incluindo a gente muito séria do balcão. 
Nem dá para acreditar que tudo isto estava escrito no fundo da taça da gelatina que comi ao almoço. 

Licínia Quitério

10.12.14

BALANÇO 2014


Chegou a época dos balanços. Mais um ano, diz o calendário. Doze meses mais de vida, a juntar a muitos, muitos, no meu caso. Tive um ano bom, com saúde, amigos, viagens, livros, bichos. Muita actividade indoors, pouca outdoors, por escolha minha. Atenta a quem está, a quem passa, observando muito, participando exclusivamente no que me agrada, no que pode agradar a alguém, deixando-me de voluntarismos, que disso já dei que baste e tudo fiz por vontade e por gosto. Agora é outro o meu tempo, o tempo de me preservar de contaminações para poder aprofundar conhecimentos, treinar alguma frieza para entender o torvelinho de mudança que envolve tudo e todos, com uma civilização a caminhar para um vórtice entontecedor e cruel. 
Foi o ano em que, passados muitos anos, voltei a Paris, o lugar de eleição que se afastara de mim e que, graças ao carinho de amigas, pude reencontrar e sentir-me de novo nas águas, nas pedras, nos lugares mitificados de uma outra vida minha que por ali passou.
Foi apenas um ano mais que me fez outra sendo a mesma. 
Foi um ano de muita internet, esta janela aberta para todos vós, com quem me encontro na prosa, na poesia, no humor, na fotografia, no abraço virtual, tantas vezes realizado em encontros preciosos de quem se re(conhece) nos gostos, nos projectos, nos desenhos dos dias.

E pronto, era isto o que vos queria dizer.

Licínia Quitério

2.12.14

SYLVIA


























Flores crepusculares no grande olmo no lado de fora da casa.
As andorinhas voltaram. Ciciam como aviõezinhos de papel.
Oiço o som das horas
A crescer e a morrer nas sebes. Oiço o mugido das vacas.
As cores renovam-se e a palha húmida
Fumega ao sol.
Os narcisos abrem rostos brancos no jardim.

Estou reconfortada. Estou reconfortada.
........

Sylvia Plath, tradução minha

OS CINCO



Até hoje, publiquei cinco livros, quatro de poesia e um de prosa, sempre em edições da autora que sou. São várias as razões por que tenho optado por este processo que sei ser considerado por muitos como um tanto menor, um tanto marginal, já que à partida as edições de autor estão afastadas dos grandes circuitos comerciais de divulgação e venda. De qualquer modo, as minhas pequenas tiragens têm sido esgotadas e, para maior das satisfações, os livros têm chegado a mãos de queridíssimos e notabilíssimos leitores que os acarinham e me dão nota dos seus estimáveis pareceres. Porque cheguei tarde à aventura da publicação, porque tenho consciência do meu modesto merecimento no mundo da escrita, mais não posso desejar. O próximo, O Livro dos Cansaços, será ainda editado por mim. Do futuro nada sei e, já que o cansaço não é só uma metáfora, talvez um dia me entenda com uma das simpáticas editoras que me vêm tentando. Muito obrigada aos queridos leitores que por aqui andam. 

 Licínia Quitério

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