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13.12.14

O SABOR DA GELATINA



Foi ao saborear a gelatina não sei de quê, nem perguntei, que me veio o sabor antigo de rebuçados de cinema, os que eram vendidos, antes do filme e nos intervalos, pelo rapaz de casaco branco de sarja, com um tabuleiro pendurado ao pescoço e amparado pelos braços.
Rebuçados de fruta, embrulhados em papel de várias cores conforme o paladar, que a gente desembrulhava durante a exibição do filme, com o ruído estaladiço do papel que depois era atirado ao chão ou, mais ou menos disfarçadamente, sobre a plateia, se calhava  estarmos no balcão. Era o tempo do cinema paraíso, em terra de província, um dos poucos divertimentos que havia. Estratificada que era a sociedade, o cinema era bem o mapa desses estratos, tudo previsto, nada de misturas. A plateia era toda de cadeiras de madeira, daquelas que, ao baixar o assento, e sobretudo ao levantar, faziam um estrépito dos diabos. Nas filas da frente, ficavam os soldados, a gente mais pobre e os rapazes que tinham conseguido um bilhete ou uma borla, ou se tinham aventurado a entrar por uma janela alta das traseiras, sem que os arrumadores, os fiscais, os polícias, os bombeiros, os donos da sala, os tivessem apanhado em prevaricação. Na segunda plateia, as famílias da terra, e um ou outro militar graduado, muito provavelmente sargento. O balcão, de cadeiras estofadas de veludo vermelho, era frequentado pelas famílias mais afortunadas e pelos oficiais de carreira. Na primeira fila, central, sentavam-se as pessoas mesmo muito importantes, mandantes, reverenciadas. 
Quando as luzes se apagavam, a agitação na primeira plateia continuava por minutos e era habitual ouvir assobiadelas, risadas nervosas, palavreado a meia voz, um desassossego de pernas a fazer matraquear os assentos de pau. Sempre alguém, cá de trás, mandava calar os mal educados  lá da frente, e não raro um dos franganotes atrevidos era expulso da sala pelos zeladores da ordem.
Mas o que interessava mesmo era o filme, para não falar dos desenhos animados, isso sim, as gargalhadas a explodirem na incontida alegria. Chato, chato, era o noticiário do país, com o reverendo chefe de estado a cortar fitas, a inaugurar uma barragem pela décima vez, as grandes obras do estado novo, as famílias do estado novo, a esposa do venerando a beijar criancinhas pobres coitadinhas mas protegidas pelo bom governo do senhor presidente do conselho, e a malta a assobiar, ó marreco olha o sonoro, olha a fronha daquele, e chiu, chiu, caluda, que não deixam ouvir nada.
Enfim o filme, o leão a rugir, vesgo, a cabeça para a direita, para a esquerda, oooommm, oooommm, e a malta caladinha. Ah grandes filmes,  com o Errol Flim, o Burte Lencastre, a boazona da Sarita Montiel. Quem não se lembra dos beijos da Sarita que vendia violetas, e a canalha a assobiar, com os mindinhos nos cantos da boca, uma barulheira e tanto. Grandes filmes aqueles, o Ivanhoé, o Tarzan, e os gritos à saída, a baterem no peito, a fazerem que trepavam às árvores da avenida.  E o Bucha e Estica, e o Tótó e o Cantinflas, ah aquilo é que era rir, da primeira à última fila, incluindo a gente muito séria do balcão. 
Nem dá para acreditar que tudo isto estava escrito no fundo da taça da gelatina que comi ao almoço. 

Licínia Quitério

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