Tocou à campainha. Vinha de robe azul claro, chinelos
de tiras, os braços apoiados em canadianas, e tremia e dizia, desculpe, desculpe,
eu estou muito aflita, se a senhora me fizer o favor de me ajudar, o telemóvel,
não percebo de telemóveis, quero telefonar ao meu filho, ele ainda não apareceu
hoje, estou muito aflita, não consigo ligar-lhe, aparece um cadeado, eu não
percebo nada destas coisas, se a senhora puder. O meu marido, o meu marido
desapareceu está maluco de todo, tem Alzheimer, saiu e ainda não voltou, deixou
a casa toda por arrumar, o lixo espalhado e eu nesta desgraça é que tive de
juntar tudo, ai se a senhora puder.
Mora ali mesmo em frente há relativamente pouco tempo,
nunca tínhamos falado, mas ela achou que eu a podia ajudar, tinha-me visto
entrar em casa.
Pronto, o cadeado já desapareceu, quer ligar, quer que
eu ligue, como se chama o seu filho, não, esse nome não vem na lista, vem uma R.
Sim, pode ser, é a minha nora, não gosto dela, ela é muito má para mim, mas
ligue a senhora, faça-me mais esse favor.
Falou com a R., sem animosidade aparente, falou, falou,
despediu-se. Já estava mais sossegada, ai se não fosse a senhora, que deus lhe
pague, ai.
Ajudei-a a levantar-se do cadeirão que ela achou muito
maciozinho, atravessei a rua com ela, uma eternidade, felizmente não passou
nenhum carro, não conseguiu abrir a porta com a chave que trazia pendurada ao
pescoço, os dedos não têm força, muito obrigada, deus lhe pague.
Fez-me muita pena. Ela já deve ter muita idade, está
aleijada numa anca, tem o marido “maluco”, tomara que ele não volte, disse, não
me serve para nada.
Tinha um cadeado no telemóvel, os
pés muito inchados, e uma grande raiva
pela vida, a vizinha que hoje me tocou à porta.
Licínia Quitério