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30.12.12

NEVOEIRO


Anoiteceu com um nevoeiro a invocar fantasmas, as torres da igreja liquefeitas, a luz dos candeeiros a explodir em auréolas contra a cortina, as árvores a agarrarem o céu, a espicaçarem o escuro. Também o calendário anoitece e com ele as folhas a procurarem cama breve no asfalto. É nas noites de nevoeiro que sinto a respiração alta da terra a convocar-me para encontros imprecisos, em lugares desconhecidos, de mágoas diluídas nos meus passos silenciosos. Não resisto e vou. E volto antes que o nevoeiro se desfaça.

Licínia Quitério


23.12.12

EDUARDO


Tinha quinze anos, era um menino triste, carinhoso, e embalava sonhos dentro de livros. Durante duas semanas, sentámo-nos à mesma mesa, eu, ele e os outros. Tínhamos tudo para fazer e ele fazia amizade com outros meninos. Olhava-me como se olha uma mãe e eu não tinha tempo para entender o que ele não tinha. Procurou-me algum tempo depois. Vinha ver-me, dar-me um beijo. Triste, ainda. Passou tanto 
tempo, mas, no meu desvão das memórias, guardei-o e fiz dele personagem fantasiada de escritas avulsas. E o tempo passou, tanto tempo, até que um dia me descobriu na net e me falou. Estremeci comovida. O menino voltava a procurar-me. Triste, ainda. Como sempre, não entendi o que é que ele não tinha. Hoje soube. Desistiu, o menino. Não aguentou ser triste por mais tempo. Talvez um dia o encontre, a ler para os outros meninos, finalmente contente, a olhar-me como se olha uma mãe.


Licínia Quitério

17.12.12

POESIA


O PEDRO RAMOS leu o meu livro OS SÍTIOS e fez este desenho que me ofereceu.  A Poesia continuou, noutro registo.

Licínia Quitério

8.11.12

CRÓNICA DE POBREZA


Começo por dizer da caixinha vermelha, que fora do pó-de-arroz da minha mãe, com chinesas de sombrinha aberta pintadas a negro. Gostava eu daquelas almofadas que elas traziam às costas e dos sapatos com duas tiras entre os dedos. A caixinha, que já não era de pó-de-arroz, servia de mealheiro das moedas pequeninas, escuras. Chamavam-se tostões e faziam parte da “demasia” que os meninos que faziam os recados devolviam à minha mãe. Ao fim da semana, já as demasias eram um montinho que dava aquele barulho engraçado quando eu agitava a caixa, com a tampa posta, de cima para baixo, traca-traca, traca-traca. A mãe dizia, vê lá não deixes cair que são para os pobrezinhos de sábado. A partir não sei de quando, na minha terra só havia pobrezinhos ao sábado. Imagino que eram os mesmos pobrezinhos de sexta-feira da terra vizinha a norte, e os da quinta-feira da terra vizinha ao sul e assim sucessivamente até chegarem de novo à minha terra que era a de ser pobre ao sábado. Por andarem tanto, de dia em dia da semana, a acertarem com as terras de ser pobre, por isso, julgava eu, apareciam semre descalços, com os pés muito sujos, tão sujos que a minha mãe não lhes dizia para entrarem. Por isso e porque tinham piolhos, principalmente aquele que se coçava muito e a que puseram a alcunha de O Migalhinhas. Era eu que distribuia os tostões das demasias pelos pobrezinhos de sábado de manhã. Ainda me lembro das mãos deles, só das palmas, que era essa parte que eles me mostravam, viradas para cima, meias encurvadas, para apararem os tostões escuros, um bocado mais escuros que as palmas das mãos.  A minha mãe mandava-me sempre lavar as minhas mãos depois da distribuição das esmolas, que era assim que se chamava aos tostões que iam parar às palmas das mãos dos pobrezinhos. Tenho saudades desse tempo. Não sei bem se das chinesas com almofadas nas costas, se do cheiro a azedo dos tostões, se do traca-traca da caixa para baixo e para cima e para cima e para baixo, se do sorriso da minha mãe. Sei que não tenho saudades, isso não, das palmas das mãos dos pobres das manhãs de sábado onde eu deitava tostões da caixa que já não era de pó-de-arroz.

Licínia Quitério

foto da net   

24.10.12

DONA AUGUSTINHA



No meu bairro não há só vulcões, há também a dona Augustinha lá ao fundo da loja, entre o armário dos congelados e a estante dos detergentes. Mesmo à entrada, fica a hortaliça. Eu só quero umas bananas, mas a dona Augustinha, arrastando uma pernita, logo exibe o feijãozinho verde, não quer, olhe que não tem fio, e estas perinhas, lindas, "pipino" para a saladinha, é boa ideia, vê, minha senhora, a gente gosta de mostrar o que tem, as clientes coitadinhas às vezes têm pressa e não veem, anda tudo com pressa, não é, minha senhora, pois, não sabemos para quê, até que deus queira, é a vidinha, tadinhas das criancinhas, diz a senhora muito bem, e os tomates chucha, não quer, uma beleza, leva só dois, pronto, a freguesa manda.
E lá fica a dona Augustinha, com os seus diminutivos, arrastando a pernita, até que deus queira, que ela de vulcões não sabe nem quer saber, isso são ideias minhas, mas não tenho culpa de ter um pelourinho a bem dizer à porta de casa, e de haver manhãs assim que nem chove nem faz sol e eu preciso mesmo de comprar bananas.

Licínia Quitério

14.9.12

LISBOA




Falo-te, com o peito a latejar de ausência, cidade aberta ao sul, meu porto de chegadas e partidas nos dias comovidos da asfixia, quando te fugia para a respiração dos homens livres que se chamavam Jacques ou James, das mulheres que se chamavam Claire ou Valery, que passeavam livros nas margens dos rios e fumavam em caves apinhadas de suor e dança e saxofone e contrabaixo e em ti as guitarras choravam por um fado noutra escala, noutra fala.
Suportei-te, com os esbirros de café e teatro, com os amigos lá de casa que partiam de madrugada e não voltavam ou só voltavam anos depois, roídos de saudade e conformados com a pequenez das mesas, o silêncio dos poemas, a palidez dos quadros.
Perdoei-te, quando os  amores viviam clandestinos e as prostitutas tinham meias arrendadas e o pé à parede e não se falava de sífilis. 
Amei-te, quando te ofereceram a madrugada limpa de Sofia e a cobardia dos tiranos não suportou a pulsação das flores.
Vivi as tuas praças ensolaradas de cantos e de pássaros novos chegados de longe para te ver abrir o sorriso de pedra e rio.
Atenta ao regresso dos corvos, assustei-me com as sombras dos esqueletos nos balcões apagando as sardinheiras, com a turvação do rio, com as moedas por detrás da mesa, trinta vezes trinta.
Falo-te e choro-te, cidade do meu norte e do meu sul, porque seca e cabisbaixa te vejo, catando despojos de batalhas perdidas, agoniada nas sirenes das ambulâncias, roída pelos ratos que perderam as naus, encalorada pelas áfricas que acolhes e rejeitas e maltratas  como se não quisesses fazer-lhes filhos tantos. 
Guardo-te, com o peito a latejar de ausência, no meu cofre de vaidade e ternura, para que não te percas, não te vendas, não expulses os teus homens novos, não mates as tuas mulheres velhas, não ponhas de novo o pé à parede como faziam as sem amor antes daquela imensa madrugada.

Licínia Quitério

  

  

10.8.12

ALCINA MAGRINHA DE PERNA BONITA




A Alcina magrinha tinha umas pernas bonitas. Boas, diziam os olhares dos machos vestidos de azul quando ela descia às oficinas pela escada de metal, sem espelhos nos degraus. Eram raras as mulheres dos escritórios que se misturavam com os homens de azul, junto aos guinchos das máquinas, à estridência das chapas de ferro, ao cheiro a óleos e a tintas. Alcina ia até lá com os senhores estrangeiros que vinham ver o produto, mirar e remirar, fazer perguntas, pôr defeitos. Parecia ganhar gosto por aqueles sítios barulhentos, acres, escorregadios. Falava com os homens de azul e depois com os senhores da estranja, num leva e traz de palavras trasladadas. Alcina ouvia as vozes dos homens e aprendia-lhes os olhares envergonhados, zangados. Os senhores só conheciam a voz e os olhos de Alcina que lhe traziam explicações, respostas, desculpas por vezes.
Foi num Natal que Alcina desceu, pela primeira vez sem senhores estranjeiros, ao fundo dos armazéns onde os homens de azul empilhavam os produtos, o cansaço e a zanga. Um estrado que Alcina julgou um palco, erguido num dos topos do amplo ventre da máquina de produzir os dias da raiva e os da fortuna. Os homens de azul chegavam e o cheiro ao seu suor ansioso perturbava os homens e as mulheres de outras cores que iam descendo as escadas, vindas das caixas de madeira e vidro onde gastavam os anos, vigilantes e vigiados. Era outro o cheiro do suor deles, temperado com almíscares de fancaria, mas tão ansioso como o dos de azul.  Paradas as máquinas da máquina grande, era preciso encher aquele silêncio desesperado com o matraquear de falas, desatadas em frases retalhadas, decalcadas, incoerentes as mais das vezes. Os homens de azul tinham vozes grossas e gritavam para se fazerem ouvir contra as vozes perfurantes, chiantes, batentes, de ritmos e volumes vários, do universo vulcânico das oficinas. Alcina, magrinha, de perna bonita, sentia-se entontecida. Seria dos cheiros, das vozes, da luz da manhã em que dançavam poeiras escuras como aves de mau agoiro.
Dois homens subiram ao estrado que Alcina gostava de pensar palco. Um deles era baixinho, arredondado, com o cabelo ruço já a rarear. O outro, grande, a curvar em vénia muito usada, de melena untuosa. Traziam nos braços cestos de arame luzidio que poisaram numa mesa grande. Os olhos de todos ficaram por instantes a navegar sobre os cestos, os papéis que tinham dentro, os desejos. Envelopes, corrigiu a outra, lendo as palavras ditas pelos olhos de Alcina. Envelopes com dinheiro. Dinheirinho, disse a outra. A leve agonia de Alcina encorpou, instalou-se e um friozinho tonto veio humedecer-lhe as palmas das mãos. Apenas um prólogo da peça a acontecer no estrado, atravessado pela poalha de luz negra na manhã de inverno. A voz esganiçada, em falsete, do homem baixinho, picou os ares, os ouvidos, os desejos. Disse um nome de gente escrito num envelope que tirou de um cesto. Um homem de azul destacou-se do novelo de murmúrios e dirigiu-se ao estrado, em passo desengonçado, amarrotando o boné escuro entre os dedos de ambas as mãos. Agarrou o envelope, com a falta de jeito de mãos que não folheiam, antes prendem. Afastou-se, rasgou-lhe um pedacito, espreitou para dentro dele, olhou em volta, fechou-o com ambas as mãos e saiu pelos fundos. Alcina seguiu-lhe os mais pequenos gestos, a tentar saber o que o homem pensava, o que o homem sentia, o que o homem sabia que ela não aprendera. Mais um nome gritado pela voz aflautada, mais um envelope a chegar a mãos desajeitadas, ásperas, enegrecidas. Um a um, o ventre da grande máquina foi sendo despejado de homens de azul que saíam, silenciosos, pela abertura dos fundos. Tão distraída Alcina com a sorte dos homens de azul, que nem deu pelo próprio nome, enfiado na voz esganiçada do homem baixinho empoleirado no estrado. És tu, disse a outra. Despertou e lá foi, de perna bonita, subir ao estrado, receber o envelope que lhe estendiam. Regressou, sem o abrir, sem falar. Um pequeno grupo de homens de azul esperava, olhos fitos no estrado, ouvidos atentos à voz de flauta. A chamada continuava, chegavam os envelopes ao fim, e o grupo quase imóvel, continuava intacto. Alcina demorou-se, quis saber o final do ato, encostou-se a uma parede, esquecida do seu envelope, atenta ao grupo de azul que sobrava. A outra disse: vamos, estás à espera de quê, para o ano há mais. Aquela poalha por entre a luz da manhã a fazer-lhe semicerrar os olhos. O grupo sobrante a sair pelos fundos, sem envelopes, sem pressa, sem desejo. Alcina magrinha a murmurar: não gosto, não gosto. A outra a dizer: depois habituas-te.

Alcina gordinha, velhota, de perna cansada, sem se habituar: não gosto, não gosto.

FIM

Licínia Quitério

4.7.12

ESTENDAIS



A rua velha, as casas velhas e o estendal da roupa. Nas aldeias, nas cidades, aqui ou nos outros lados do mundo, a intimidade dos corpos e das casas exposta aos favores e à devassa do sol e do vento, relegados os pudores, os costumes, as clausuras. 

Licínia Quitério

25.6.12

O LINHO




Colher, ripar o linho. Fases primeiras do "tormento", assim chamado ao ciclo de um ano em que se trabalha para chegar da semente ao fio. Tarefas duras, de homens e de mulheres, saberes milenares, gestos ritualizados,  benzeduras e cantares que Giacometti ouviu e registou. As fiandeiras, as tecedeiras, as bordadeiras, as mulheres antigas que nos deixam obras preciosas onde se pode ler a paciência, o engenho, os nós da vida atados e desatados, em telas  de ingenuidade e de experiência feitas.

Licínia Quitério

AS ALMAS




As tentadoras histórias das fachadas do tempo. Fico a olhar, a olhar, a máquina a procurar as almas da janela, da dona dos vasos, de todos os que por ali viveram e morreram. Há andorinhas por dentro da frescura do barro. O calor faz ricochete na Gardunha e abrasa a cidade. Regresso com a fachada dentro da máquina. As almas ficaram por lá, no confronto eterno com o calor, com o gelo.

Licínia Quitério

16.6.12

ARROZ DE TELHADO




A liberdade de nascer, de crescer, de avizinhar, de florir, de desistir. Assim acontecem os pequeninos mundos vegetais e as suas fabulosas geometrias. Entre o sol e a chuva, as abelhas rondam as florzinhas de neve de uma planta a que ouvi chamar "arroz de telhado" porque enraíza entre telhas, lá onde o sol é alto e o barro guarda a chuva. Quero que sejam os pardais os semeadores destas heroínas que tão pouco pedem para os seus modestíssimos destinos.

Licínia Quitério

15.6.12

A PORTA DA TARDE



Entretenho-me a espreitar a porta da tarde nas flores dos meus vasos e sonho jardins de outras babilónias, outros impérios, outras gentes, outras tardes quentes que até mim vieram, porque tudo é possível quando espreitamos as portas abertas dos dias cerrados.

Licínia Quitério

Nota: Resposta ao desafio em http://outrostemas.blogspot.pt

13.6.12

ERA UMA CASA




Era uma casa. Às vezes há uma casa que segreda por detrás da cal. Uma casa e uma árvore que veste a intimidade da casa. Há um muro. E o muro está ali para contar que houve um tempo antes da casa. E antes dele nasceram as pedras. A memória antiga das pedras fala de conchas, de peixes, de sal. Ao princípio era o mar, depois a terra e os seus bichos. E houve guerras quando chegaram os homens que fizeram os muros. E fizeram a casa. E plantaram a árvore. E colhem os frutos. E vivem e dormem, por detrás da cal, na casa dos segredos, na concha de terra que veio depois do mar, depois do nada que foi antes do mar, antes, muito antes. 

Licínia Quitério

"O DESPERTAR DOS VERBOS"



Poema de Mário Domingos, do seu único e grande livro. Foi o Amigo, ficou a Poesia e a Saudade.

Licínia Quitério

9.6.12

TADZIO



Um postal, datado de 1911, para o meu Pai, escrito por uma irmã dele. Mergulho em tempos antes do meu. Logo digo: Mio Tadzio! Thomas Mann, Visconti e a Morte em Veneza. O hotel, a mãe de Tadzio, a praia, a cadeira de praia, o calor, o calor, a febre, a beleza, o amor, o amor, o aceno, Tadzio!, o suor, a tinta do cabelo, Amore mio!, a febre, a peste, a água, Tadzio!, o amor, Mein Liebe! a morte.

O postal que a mim chegou, talvez igual a outro que Thomas Mann olhou. Foi ontem. O tempo breve, breve.


Licínia Quitério

20.5.12

AVE





Porque estive há pouco em Guimarães, lembrei-me de quando lá fui, com os meus Pais, pouco mais do que adolescente, de olhos arregalados para novas terras e ouvidos já atentos a outros falares. Há dias, o comboio levava-me lentamente pelo vale do Ave, lindíssimo de verdes e de águas e de sombras, manchado de esqueletos de fábricas, muitas fábricas abandonadas, desfazendo-se em estilhaços de vidro, em chapas de metal ferrugentas, janelas rasgadas num riso monstruoso. Pelo meio dos vinhedos, as velhas casas de granito ainda por lá estão, com ou sem gente, com longas histórias para contar. Foi no balanço ritmado do comboio que me revi junto de casas como aquelas, sendo eu muito jovem e muito curiosa. Amigos de meus Pais levaram-nos a visitar uma fábrica de cutelaria que funcionava num daqueles recantos de paraíso, perdido no verde vinha e no luzir das micas. Era a hora do almoço do pessoal, quase só mulheres que, sentadas no chão à sombra das parreiras, sorviam o caldo em malgas, que seguravam com ambas as mãos. Foi aí que senti os olhares das mulheres acocoradas a espiarem-me por detrás das malgas. Recordo o meu vestido em trapézio, o meu cabelo tufado, os meus sapatos de salto. E as minhas mãos muito brancas que me deram de repente uma imensa vergonha ao notar as mãos, da cor do granito, da cor do pó de polir os talheres, das mulheres na hora do caldo. As minhas mãos, ainda brancas, têm rugas e veias azuladas como as paredes das fábricas mortas, no vale do Ave, a caminho de Guimarães, muitos, muitos anos depois de eu ter aprendido como eram os olhos das mulheres suspensos do trapézio do meu vestido.

Licínia Quitério

14.5.12

O CALOR E O VERDE




Foram os dias do calor e do verde. A luminescência do granito acendia estrelinhas sob os nossos passos. A sinfonia de verdes, nas alturas da Penha, dissipava todo o cansaço que do corpo se esquecia. Da humildade dos musgos à altivez das frondes dos carvalhos, toda uma gama de ondas de cor e de luz, que uma e a mesma coisa são, mas nos confundem o desejo de diversidade. As grandes pedras, solitárias ou em acasalamentos de improvável estabilidade, chamam-nos, provocam-nos, sugerem a nossa pequenez, a quase transparência que somos no tempo do calor e do espanto. Só quando regressamos ao casulo dos dias, repegamos a construção da solidez, antes de sermos, nós também, uma cor, uma luz, na última, possível, única dimensão.

Licínia Quitério

14.4.12

TECLADO


Menino à chuva
subindo a rua
mochila às costas
pula que pula
chuva não molha
herói não morre
joga que joga
tecla que tecla
corre que corre
grita que grita
chega que chega
senta que senta
tecla que tecla
joga que joga 
herói não morre
ó mãe já vou
tecla que tecla
tecla que tecla


Licínia Quitério

21.3.12

CLARISSE



Um joelho pousado sobre a relva, Clarisse parece acariciar o verde com as polpas dos dedos da mão. Fica assim, naquele tempo de pintura antiga, estalada a pele da mão, a pele do rosto, escurecida a palha do chapéu, franzida a roupa. Intacta a cor dos olhos, da mesma tinta que foi dada à relva. Nos pequenos arcos de círculo, que a mão vai desenhando, passam pés pequeninos, hesitantes, vigiados. Não deixam marcas, são alados. Não tarda, os bem maiores, trementes, espalhando cheiros de flores e de sementes. Clarisse suspende o gesto, ergue-se. Há sítios onde a relva não regressa. O verde dos seus olhos escurece, levemente.

Licínia Quitério

Texto em resposta a um desafio aqui.

12.3.12

SOMBRAS


Foi mesmo ela que me contou. Pausadamente, a retirar da mala um lenço de papel para limpar os óculos. Sabe que, quando aborda aquele assunto, as lentes, a certa altura, ficam embaciadas. É ainda uma mulher corpulenta, vistosa, de queixo erguido e passo firme. As rugas ficam-lhe bem quando sorri largamente. Não nos conhecíamos há muito, mas havia qualquer traço que nos ligava e nos fazia gostar de caminhar lado a lado, falando sem precisar de nos olharmos. Fora sempre uma mulher à frente do seu tempo, como se diz de alguém que procura o sítio de viver. 
Se estiver a aborrecer-te, diz, que eu mudo de assunto. 
Não esperou pela resposta. Continuou a relatar o seu pedaço de história, com a desenvoltura de quem decorou para sempre o papel que lhe atribuíram.

Licínia Quitério

15.2.12

O TALÃOZINHO



A chinesinha estende a mão pequena com unhas postiças, atravessadas de motivos verde e  prata, e diz: "o talãozinho". Não faço ideia se em mandarim há diminutivos, mas fiquei a pensar nesta mulher que aprende a falar a minha língua com os clientes e que com eles reparte sonoridades estranhas, do seu "in" alongado e estridente ao nosso "an" interrogativo e abrutado. Negócios à parte, se é possível assim dizer neste mundo mercadejado, os chinos e os portugas lá se vão entendendo, no balcão das lojas-barafunda, trocando consoantes e vogais, alguns sorrisos tímidos,  desconfianças e uns arremedos de ternura. A portuguesa diz-lhe "minha querida", ela arredonda a obliquidade dos olhos e dá-lhe "o talãozinho". Ninharias, coisas pequenas, pequeninas, diminutas.

Licínia Quitério  

13.2.12

OS POETAS, OS GATOS, OS PARQUES





Apuram os sentidos, a reconhecer o território. Afagam o tronco de uma árvore, olham a copa e, se fosse da sua natureza, trepariam e ficariam muito serenos, deitados no garfo de dois ramos jovens. Esmagam nos dedos uma folha de lúcia-lima e cheiram-na, aspiram-na, com sensualidade disfarçada. Pontapeiam uma pinha caída no saibro do caminho, para depois, mais adiante, a apanharem e a arremessarem. Como um gato faz com um novelo. São solitários. Evitam cruzar-se com outros exploradores. Procuram caminhos diversos. Debruçam-se nos lagos, molham as pontas dos dedos e não as enxugam. Às vezes passam-nas no rosto. Espiam os pássaros, detêm-se, para não os assustarem.
Os gatos, esses, aparecem de noite. É o seu tempo dos parques. É também o tempo de muitos outros bichos que viram os homens sem serem vistos. Dos mistérios dos parques só os gatos sabem. Nunca os revelarão. Os poetas sabem disso, mas continuarão a deslizar nos parques, imitando os gatos. Na esperança de um dia saberem ler o que eles trazem inscrito nas pupilas.

Licínia Quitério

8.2.12

UM CONCERTO ROMÂNTICO




O pianista, no seu afã de tocar com limpeza, entre cada peça romântica, com o único lenço branco, afagava os beiços, a testa, os óculos que retirava da fronte, e as brancas e as pretas do teclado. Ajeitava com esmero as bandas da casaca, puxava os punhos,  encolhidos mangas adentro, repuxava as calças para que os joelhos articulassem confortavelmente.
Nós no camarote exíguo, porque as pessoas no seu tempo eram mais exíguas de formas, roçando os veludos vermelhos. Pensando bem, seria lugar de Manon Lescaut e seus protetores. E eu desejei ter, ao menos, um lorgnon que me permitisse melhor divisar o colar de esmeraldas da galdéria que o conde de Maupassant, o do bigode talhado para provocar sonhos húmidos a donzelas, se atrevia a trazer pelo braço, provocador e triunfante.
À saída, pareceu-me ouvir: Marguerite! Alguém respondeu: C'est moi!
Lá dentro, as últimas palmas ao pianista do lenço agora menos alvo.
Pus termo às fantasias, antes que Alexandre Dumas me trespassasse com o seu olhar de desdém.

Licínia Quitério

A CAIXA DE MÚSICA



A caixinha de música tem a sua bailarina em pontas, rodando suave, suavemente, ao som dos sininhos dos anjos que tocavam em todas as caixinhas da minha infância. O espelho duplica-lhe a presença delicada. Na caixa há também uma fada sentada num cogumelo e um rasto de estrelas que a varinha foi semeando. Abro-a e a toada repetitiva embala-me, afaga-me, transporta-me para uma nuvem de inocência onde havia bailarinas e fadas de cabelos de oiro que acendiam luzes miudinhas no sono dos meninos.

Licínia Quitério

6.2.12

LAURISSILVA




No coração da floresta laurissilva, lá nas alturas da serra, por onde escorrem os "fios" de água, lugares de onde as gentes sairam para a estranja e os "pousos" descansam enfim da enxada dos que se agigantaram para neles fazerem crescer o que haviam de comer. Bem no alto, onde acaba o caminho de serpente, mostra-se uma pequena clareira, e uma "casa de chás" abre-nos as portas para aquecermos as falas, no frio das neblinas de fim de tarde. Se havia gnomos e duendes, disso estou segura. Tanto como do computador portátil que, pelos seus fiozinhos igualmente invisíveis, ligava ao mundo o dono da casa e, mais do que ele, o seu filho estudante. Trouxe no bolso um cheiro a terra, primordial e intenso.

Licínia Quitério

COISAS ESTRANHAS




Dizia amiúde coisas estranhas. Fora do contexto das conversas em que a julgavam presente. Faziam-lhe perguntas incómodas: Sabes que o Fulano deixou a mulher? Não, não sabia. Nem sabia sequer quem era Fulano. Porque esperavam que tivesse algo para dizer, arriscou: Como ficaram os olhos dela? As mãos dele agora estão vazias? Gostaria de saber. Mas ninguém tinha as respostas. Continuaram: Parece que arranjou outra. Exclamou: Oxalá gostem do mesmo mar. É tão importante para viajarem num barco de dois lugares. Dizia coisas francamente esquisitas.

Também os gostos dela eram bizarros. Chapéus com fitas coloridas, terras vermelhas, jogos de palavras, casas velhas. E já ninguém a podia ouvir afirmar, em ladainha: Gosto tanto! Nem valia a pena perguntar-lhe: De quê? Era sempre o mesmo. Subia ligeiramente os ombros, apertava as mãos e sorria com os olhos húmidos. Alguém um dia comentou: Parece que saíu dum quadro de Renoir. Ela não deve ter ouvido, senão teria sussurrado, com aquela voz sedosa e distante: Gooosto.

Licínia Quitério

23.1.12

UMA HISTÓRIA DE ENCANTAR




Não, não é uma "mina de água". É a casa da fada do jardim. Como todas as fadas, só se deixa ver por quem nela acredita. Durante muitos anos não me apareceu. Voltei agora a vê-la. Não envelheceu. As fadas ficam sempre assim, meninas, de pele branca, cabelos loiros ondulados. Os olhos brilham e nos dentes muito brancos há cintilações de diamante. A uma palavra, que é segredo só meu, abre-me a porta verde e ficamos ali as duas, sentadas no tapete de folhas secas, a desfiar feitiços bons, a soltar pequeninas risadas, a cumprimentar os pirilampos que nos dizem que a noite chegou. Quando estamos juntas, eu também sou invisível para todos, menos para a fada do jardim, amiga que julgava ter perdido para sempre, com esta minha mania de acreditar nas pessoas que não acreditam em varinhas de condão. 

Licínia Quitério

20.1.12

MEIAS TINTAS




Foi assim a descida da tarde. Algo indecisa esta reunião de terra céu e mar. Adiada a entrega ao inverno, há uma moleza de meias tintas, de leve aragem, de pequena friagem, de um mar só meio macho. Não é bem isto que eu quero. Talvez amanhã.

Licínia Quitério

12.1.12

MIL FORMAS




Não cozinham o que comem. Vivem da seiva dos outros. Gostam da sombra, da humidade, dos tecidos putrefactos. Têm formas rigorosas, alargam umbelas, leques, louvam o circular e o concêntrico. As cores miméticas protegem-nos, disfarçam-nos, dão-lhes um ar humilde, discreto, sereno, inofensivo. Puro engano. De entre eles pode destacar-se uma forma, uma cor, um tamanho que colhe o colhedor. A podridão de que se alimentam envenena-lhes as lâminas, as carnes. Ai de quem na floresta se perder e os encontrar. Mil formas tem o mal.

Licínia Quitério

2.1.12

ESTE MAR




Este mar poderoso sempre se renova em lençóis de sedução e ameaça. Afronta-nos com paredes de esmeralda subitamente erguidas. Ruge nas furnas e bate nos rochedos com estalos de chicote. Salta, abre leques de espuma, visita as varandas. Depois retira-se, acalma as cores, aquieta-se por instantes. E volta, volta, volta sempre, diferente, promissor de bonanças ou procelas, imprevisível, fantástico mar do meu inverno.

Licínia Quitério

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