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30.6.10

CRÓNICAS DE AZEDUME 3


A senhora chegou com a cadela muito grande e muito velha. Disse-lhe Senta, Santa! Senta, Santa! e depois para quem estava nas outras mesas da esplanada Está surda, coitadinha. E gritou Senta, Santa! A Santa sentou-se. Depois a senhora disse para a empregada Que bolos tem? A empregada ficou calada, a pensar. E a senhora disse Tem bolos de arroz? E a empregada disse Não! mais com a cabeça do que com a fala. A senhora continuou Tem queques? A empregada disse Sim! com a voz. A senhora disse Então traga. E um chá. Tem chá de quê? A empregada disse dois ou três nomes, em voz baixa. E a senhora disse Esse mesmo. Traga. A Santa continuava sentada. Antes da empregada chegar à mesa, a senhora gritou Nunca mais cá venho. Chá numa caneca. Não. E preta. Isso é que nunca. Que horror! A empregada parou com a caneca preta na bandeja. A senhora disse Ponha aí. Eu vou beber, mas fique sabendo que não volto cá. Um chá deve vir em cafeteira. A empregada disse Eu trago outro chá. A senhora disse Não. Hoje bebo assim. Segundos depois gritou Que horror. A água está morna. Não sabe a nada. E disse para a mesa do lado Não ferveram a água. Eu tenho de dizer. Para aprenderem. A empregada ouviu, foi lá dentro e quando voltou trazia um chá a ferver num bule de metal. A senhora arreganhou um sorriso e disse Pronto. Está bem. Assim é que é. Quando começou a vazar o segundo chá na nova chávena, disse Apre! Assim também não. Desviou a perna para não ser queimada pela água que escorria antes da chávena. A Santa deu um grito de cadela com dor, levantou-se e correu até ao fim da trela. A senhora gritou Nem oito nem oitenta. Santa, meu amor, senta! Nunca mais cá venho.

Licínia Quitério

7.6.10

CRÓNICA DE DESPERTAR 2


Acordei tarde e o dia fez-se parco e o desatino das horas foi a tontura do quarto em desalinho, do sol já alto cravando uma lança de oiro no soalho.  No silêncio da casa uma censura pela ausência do matinal concerto do chiar dos gonzos das portadas, do arrastar dos passos na rotina dos lugares onde mora o aroma do café, a garridice dos amores-perfeitos, o prato do comer da gata miando pela fome prolongada.
Ligar o computador e dar uma vista de olhos ao correio, ao resumo das notícias que pela tarde chegarão, com os seus pormenores bastas vezes devassos e sórdidos.
Preparar um dia não é tarefa fácil, tanto mais quanto o sono o encurtou. Viver a vida não é tarefa fácil, tanto mais quanto o tempo a encurtou. O que nos vale é ter havido um poeta que nos disse do sol, da poesia, das danças e os outros que, mesmo sem o dizerem, alimentam seus versos do riso ou do choro das crianças.

Vou viver tudo o que tenho até ser noite. E é muito ainda. Amanhã falaremos melhor.

Licínia Quitério

CRÓNICA DE DESPERTAR

Em que estou a pensar? Perguntam-me ao despertar. Poderia responder: em nada, como se nada fosse nome de coisa em que se pense. Melhor dizer: em muitas coisas, tantas que se apresentam como uma massa informe, parecida, lembrei-me agora, com um pão de sementes antes de ser cozido. É isso. Estão a ver? Uma mole de farinha e água, a tomar jeito, pespontada aqui e ali por grãozinhos de cereais. Farinha foi a noite e os sonhos muitos, incoerentes, difusos, como se querem os sonhos. A noite ainda aqui mora, mas os grãos de ideias multiplicam-se, colidem, atrapalham-se, procuram os seus lugares no dia.
No páteo, um leve zumbido de insectos para a colheita do néctar divino. Há um diálogo de cães, na vizinhança. Que dirão? Fome, sede, amor pela cadelinha branca que os provoca? Tomo o meu café, negro, quente, amargo e só então dou os bons dias a mim mesma. Como quem diz: A moleza por hoje acabou. O dia espera-te.

O céu está azul, imaculado, mas, vinda dos lados do mar, anuncia-se uma neblina que talvez à tarde se diga frescura. Como é costume neste mês de rosas, mas também de caprichos e incertezas.

Licínia Quitério

CRÓNICA DE PERMANÊNCIA


Havia um relógio na parede, com um cavalinho a encimá-lo. Talvez tivesse uma patinha dianteira erguida, já não sei bem. O balançar do pêndulo hipnotizava-me. Não conseguia desviar os olhos daquele disco dourado, lavrado de arabescos. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. E a menina que eu era entristecia, como entristecem as meninas, levemente, sem demoras. Logo, logo, se abria uma luzinha nos meus olhos. Na mesma parede, um de cada lado do relógio tic-tac, um azulejo de loiça branca, com uma cara de gato preto. Cara, sim, que os gatos sorriem e só sorri quem tem cara. Ao pescoço uma coleirinha amarela, com um guizo pendente, da mesma cor. Por detrás do gato havia umas folhas verdes que eu imaginava serem de couve e que nunca entendi muito bem para que quer um gato a companhia de uma couve. Iguaizinhos, nos seus baixos relevos brilhantes, lá estavam eles, um de cada lado do tic-tac. Sempre esperei que um dia virassem ao de leve as cabecitas e se olhassem, como se um deles fosse apenas espelho, o que nunca aconteceu. Muitos anos passados, já sem a avó nem o relógio tic-tac, um deles continua comigo. O outro seguiu caminho diferente, vive noutra casa. Por isso deixei de esperar que voltasse a cabeça para olhar o outro como se fosse um espelho.
O certo é que, ainda hoje, quando sinto que a tristeza quer chegar porque algum tic-tac soou no meu coração, olho o meu gato preto, com seu guizinho dourado e sorrimos, frente a frente, como mulher e gato que se conhecem, se adivinham.

Licínia Quitério

CRÓNICA VEGETAL 2


Foi uma pequena semente, espalmada como uma minúscula folhinha. Deitaram-na em cama de terra fofa e com a mesma terra a ocultaram. Precisava de um sono tranquilo, prolongado, com sonhos de álacre grandeza.
Da pequena semente foi saindo um corpito decidido a enfrentar o que quer que houvesse do lado de cima, do lado de lá da cama de terra.
Quase cegou quando chegou à luz que tudo banhava em seu redor. Deitou-se a medo no chão que sentiu firme e húmido e logo decidiu crescer e alongar-se em viagem, numa profusão de corpos verdes e de grandes folhas, cada dia maiores. O sol escaldava e pedia vida, muita vida. Respondeu ao pedido e, ao abrigo das grandes folhas, fez-se também flor, tomando a cor do ar quente em seu redor. Flor que nasceu para ser mãe.
E enquanto os seus braços cor de ar quente se encolhiam, se anulavam, um filho lhe crescia, de verde pequenino à ousadia da cor do próprio sol que lhe sorria. Os filhos crescem para ganhar o longe e assim ele partiu, esplendoroso, ganhando mundo para um dia o perder.
Quando o vemos, na madureza da idade, não recordaremos a sementinha que foi, mas aplaudiremos o triunfo do sol, redondo como ele, ardente assim na sua cor de fogo.

Licínia Quitério

CRÓNICA VEGETAL 1


Os jardins públicos de hoje são diferentes dos de outros tempos em que a floricultura era mais amor e suor de jardineiro e menos cultura intensiva, pronto a plantar, pronto a arrancar e a substituir. Hoje, nos jardins públicos, as plantas, em regra, não cumprem os seus ciclos de vida. Num dia é a profusão das petúnias, no outro a dos amores- perfeitos. As begónias duram mais, muito certinhas, calibradas. As sálvias só lá estão enquanto as florações vermelhas não se atreverem à esperança de frutificarem. No dia seguinte vem o carro grande, com as ferramentas luzidias e arranca-as todas. Logo se segue outro carro, quem sabe com sempre-verdes, gémeos todos de forma e volume. São outros os tempos e a indústria das flores (como me incomoda a expressão) tem as suas regras, os seus objectivos a cumprir para que se mantenha "viável".
Pois os jardins andam bonitos, sim senhores, e eu vou-me habituando a que as flores também passaram a ser objectos descartáveis.
Feliz fico quando encontro um jardim à antiga, com espécies diferentes em convivialidade, nos seus diferentes tamanhos, nas suas diferentes idades. E as canas! As canas na sua função de esteios a assegurar aprumos. Como podem as dálias crescer sem encurvar se não forem as canas? Jardins anárquicos, com tempos de vida e morte natural. Não geométricos, não assépticos, não formatados, também eles, como outros seres viventes que conhecemos.

Licínia Quitério

CRÓNICA DAS LONJURAS

Não tardaria aí o minuto de comer as passas, de beber o espumante, de subir para a cadeira, de beijar os amigos, de apitar as gaitas, de bater latas.
A mulher afastou-se discretamente do ruído da sala de festa e foi à varanda. A noite fria, húmida, serena. Iluminações festivas nas ruas ao longe, que aquela ainda guardava o nome de azinhaga e luzes só as das janelas. Na antecipação da explosão, faz-se um silêncio. Breve, ansioso, quase dorido.
Foi esse tempo que o homem aproveitou para se passear pela azinhaga deserta de gentes e de carros. Era só um homem no escuro da rua, que a claridade começava à altura de dois pisos. Com andar desengonçado, sinuoso, falava alto para o telemóvel bem encostado ao ouvido direito. O sotaque de africano falando português, de vogais bem abertas. “Que saudades, maninho. Tou bem. Tou bem. Beijo na Jessica, mano. Tudo bem. Tudo bem.”
Na TV da sala ouvia-se a contagem decrescente: “…cinco…quatro…três…dois…uuum!!”
O homem deu uma gargalhada e desapareceu ao virar da esquina. Dobrara o cabo do ano. A rir, ao telefone, com o maninho num outro continente.
A mulher continuou à varanda e viu o fogo de artifício romper o céu. Novelos de luz, flores de cor, lágrimas descendentes. Uma delas reflectiu-se-lhe no rosto. Como se pedisse guarida. “Tudo bem, maninha. Tudo bem.”


Licínia Quitério

6.6.10

CRÓNICAS DE AZEDUME 2

Pelo modo como ela disse Posso? e puxava já uma cadeira, deviam ser conhecidas, mas não muito íntimas, que a outra respondeu Faça favor. A conversa das mulheres desenvolve-se com maior fluidez do que a dos homens.

Eles precisam de ter um jornal aberto, de preferência desportivo, para que o assunto se apresente e ganhe cor. Se a televisão estiver ligada, comentarão o programa a que ambos não ligam nenhuma. Lá a patroa é que sabe disto, nomes dos actores, quem anda com quem, vem tudo naquelas revistas cheias de mulheres boas na capa e outras, diga-se, umas carcaças cheias de cremes ou gel, ou lá o que é. Tudo gente fina e cheia de grana, o que lá vai por trás é que não dizem. Isto é tudo uma falsidade, é o que é. E aquele gatuno do árbitro do jogo de ontem? Gatuno, não é bem assim. Não? Então não estava à vista de toda a gente que foi mão do Nequinho? Não? É porque você não viu o replay. Está lá, clarinho como água. Gatuno e vendido. Espere pela pancada. Um dia destes alguém perde a paciência, mete a boca no trombone e você vai ver. Sim, não me admirava. Há jornais que vivem dessas fofoquices. Depois não dá em nada, mas entretanto vão fazendo esticar o assunto e é ver as vendas a subirem. Não variam muito as conversas dos homens que se encontram por detrás duns jornais e que não têm nada para dizer um ao outro. Ter até tinham, mas pieguices dessas são para mulheres. Sempre a queixarem-se, da saúde, dos preços, dos filhos, deles, maridos, que não as ouvem. Mas quem é que tem paciência para aquela lenga-lenga? Quando a minha está virada para aí, ala que se faz tarde. E agora por isso, estou no ir que o almocinho já deve estar a chamar por mim. Até amanhã. E, olhe, não tenha dúvida que foi mão. Estou a gozar consigo, homem. Bom apetite.

Com as mulheres é mais fácil, mais variado. O que é que toma? Um abatanado. Para mim é bica normal. Já sei que anda à procura de emprego. Não está fácil, pois não? Nem me diga. Na minha idade ninguém me dá trabalho. Ainda sou nova, diz a Alda? Já passei dos quarenta, pois. Olham para mim e perguntam: O que foi o seu último emprego? Quando lhes falo do instituto de massagens, franzem logo o nariz. Terapeuta ou dessas de estética? Como se as de estética não tivessem a categoria das outras. Diploma não tenho. Também nos sítios por onde andei ninguém mo pediu. O melhor diploma tenho-o aqui nas costas que isto de passar horas a fazer assim. E arqueava as costas e esticava os braços sobre a mesa, em flexões síncrones dos pulsos. A outra olhou em volta e disse, a fazê-la parar a demonstração. Pronto. Já percebi. Agora tinha uma promessa vaga de tomar conta de crianças nessas coisas dos tempos livres. Seria bem bom, seria. O meu marido? Esse está em grande. O que ganha é para ele e eu que me vire. Foi, foi sempre assim. Só pensa nele. Tem um trabalhito leve, desses com computadores, que ele de parvo não tem nada. E uma saúde de ferro. Ainda agora foi fazer exames de rotina, que ele tem um medo de morrer que deus me livre, e não quer saber a Alda os resultados? Não, muito pelo contrário. Tem tudo bom. Nem uma pontinha de colesterol, a tensão é óptima, até a próstata está como deve ser. Bom, uma ova! Isto anda tudo muito mal distribuído, é o que lhe digo. Mais nova uns anitos sou eu e já tenho uma data de mazelas. Elas não matam, mas moem. Bom, tenho que ir andando que se ele chega e o almoço não está na mesa, está bem, está, temos trombil para o resto do dia. Senta-se a ver o jogo na televisão e conversa nem eu. A porcaria do jogo é que interessa para amanhã ter que falar com os amigos. E desculpe lá estes desabafos, Alda, mas nós mulheres temos de ser umas para as outras. Até amanhã se Deus quiser.


Licínia Quitério

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