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15.2.12

O TALÃOZINHO



A chinesinha estende a mão pequena com unhas postiças, atravessadas de motivos verde e  prata, e diz: "o talãozinho". Não faço ideia se em mandarim há diminutivos, mas fiquei a pensar nesta mulher que aprende a falar a minha língua com os clientes e que com eles reparte sonoridades estranhas, do seu "in" alongado e estridente ao nosso "an" interrogativo e abrutado. Negócios à parte, se é possível assim dizer neste mundo mercadejado, os chinos e os portugas lá se vão entendendo, no balcão das lojas-barafunda, trocando consoantes e vogais, alguns sorrisos tímidos,  desconfianças e uns arremedos de ternura. A portuguesa diz-lhe "minha querida", ela arredonda a obliquidade dos olhos e dá-lhe "o talãozinho". Ninharias, coisas pequenas, pequeninas, diminutas.

Licínia Quitério  

13.2.12

OS POETAS, OS GATOS, OS PARQUES





Apuram os sentidos, a reconhecer o território. Afagam o tronco de uma árvore, olham a copa e, se fosse da sua natureza, trepariam e ficariam muito serenos, deitados no garfo de dois ramos jovens. Esmagam nos dedos uma folha de lúcia-lima e cheiram-na, aspiram-na, com sensualidade disfarçada. Pontapeiam uma pinha caída no saibro do caminho, para depois, mais adiante, a apanharem e a arremessarem. Como um gato faz com um novelo. São solitários. Evitam cruzar-se com outros exploradores. Procuram caminhos diversos. Debruçam-se nos lagos, molham as pontas dos dedos e não as enxugam. Às vezes passam-nas no rosto. Espiam os pássaros, detêm-se, para não os assustarem.
Os gatos, esses, aparecem de noite. É o seu tempo dos parques. É também o tempo de muitos outros bichos que viram os homens sem serem vistos. Dos mistérios dos parques só os gatos sabem. Nunca os revelarão. Os poetas sabem disso, mas continuarão a deslizar nos parques, imitando os gatos. Na esperança de um dia saberem ler o que eles trazem inscrito nas pupilas.

Licínia Quitério

8.2.12

UM CONCERTO ROMÂNTICO




O pianista, no seu afã de tocar com limpeza, entre cada peça romântica, com o único lenço branco, afagava os beiços, a testa, os óculos que retirava da fronte, e as brancas e as pretas do teclado. Ajeitava com esmero as bandas da casaca, puxava os punhos,  encolhidos mangas adentro, repuxava as calças para que os joelhos articulassem confortavelmente.
Nós no camarote exíguo, porque as pessoas no seu tempo eram mais exíguas de formas, roçando os veludos vermelhos. Pensando bem, seria lugar de Manon Lescaut e seus protetores. E eu desejei ter, ao menos, um lorgnon que me permitisse melhor divisar o colar de esmeraldas da galdéria que o conde de Maupassant, o do bigode talhado para provocar sonhos húmidos a donzelas, se atrevia a trazer pelo braço, provocador e triunfante.
À saída, pareceu-me ouvir: Marguerite! Alguém respondeu: C'est moi!
Lá dentro, as últimas palmas ao pianista do lenço agora menos alvo.
Pus termo às fantasias, antes que Alexandre Dumas me trespassasse com o seu olhar de desdém.

Licínia Quitério

A CAIXA DE MÚSICA



A caixinha de música tem a sua bailarina em pontas, rodando suave, suavemente, ao som dos sininhos dos anjos que tocavam em todas as caixinhas da minha infância. O espelho duplica-lhe a presença delicada. Na caixa há também uma fada sentada num cogumelo e um rasto de estrelas que a varinha foi semeando. Abro-a e a toada repetitiva embala-me, afaga-me, transporta-me para uma nuvem de inocência onde havia bailarinas e fadas de cabelos de oiro que acendiam luzes miudinhas no sono dos meninos.

Licínia Quitério

6.2.12

LAURISSILVA




No coração da floresta laurissilva, lá nas alturas da serra, por onde escorrem os "fios" de água, lugares de onde as gentes sairam para a estranja e os "pousos" descansam enfim da enxada dos que se agigantaram para neles fazerem crescer o que haviam de comer. Bem no alto, onde acaba o caminho de serpente, mostra-se uma pequena clareira, e uma "casa de chás" abre-nos as portas para aquecermos as falas, no frio das neblinas de fim de tarde. Se havia gnomos e duendes, disso estou segura. Tanto como do computador portátil que, pelos seus fiozinhos igualmente invisíveis, ligava ao mundo o dono da casa e, mais do que ele, o seu filho estudante. Trouxe no bolso um cheiro a terra, primordial e intenso.

Licínia Quitério

COISAS ESTRANHAS




Dizia amiúde coisas estranhas. Fora do contexto das conversas em que a julgavam presente. Faziam-lhe perguntas incómodas: Sabes que o Fulano deixou a mulher? Não, não sabia. Nem sabia sequer quem era Fulano. Porque esperavam que tivesse algo para dizer, arriscou: Como ficaram os olhos dela? As mãos dele agora estão vazias? Gostaria de saber. Mas ninguém tinha as respostas. Continuaram: Parece que arranjou outra. Exclamou: Oxalá gostem do mesmo mar. É tão importante para viajarem num barco de dois lugares. Dizia coisas francamente esquisitas.

Também os gostos dela eram bizarros. Chapéus com fitas coloridas, terras vermelhas, jogos de palavras, casas velhas. E já ninguém a podia ouvir afirmar, em ladainha: Gosto tanto! Nem valia a pena perguntar-lhe: De quê? Era sempre o mesmo. Subia ligeiramente os ombros, apertava as mãos e sorria com os olhos húmidos. Alguém um dia comentou: Parece que saíu dum quadro de Renoir. Ela não deve ter ouvido, senão teria sussurrado, com aquela voz sedosa e distante: Gooosto.

Licínia Quitério

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