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22.5.11

A MENINA LAURINHA

Ouvi um leader partidário dizer que os processos de exploração por aí anunciados não têm nada de novo. São iguais ao que foram sempre.
Foi quando me lembrei da Menina Laurinha, seca de carnes, de perninha fina e arqueada, com o cabelo naturalmente ondulado, muito bem fixado na cabeça de andorinha. Toda a gente a conhecia e muitos a cumprimentavam com humildade e alguma subserviência. Nunca se sabia quando se poderia precisar de bater à porta da Menina Laurinha que espreitava aos arabescos de ferro forjado, depois de entreaberto o pequeno postigo. A Menina Laurinha emprestava pequenas e grandes maquias e cobrava juros como bem entendia. Não se ficava por aí a segurança da emprestadora. Exigia penhores que podiam, conforme o pedido, ser o fiozinho de oiro do baptizado do petiz, os brincos de platina, única relíquia sobrante do casamento, a “fazenda” de terreno, herança dos pais, o “prédio de casas”, verificada que fosse a ausência de hipotecas e tudo, tudo o que a Menina avaliasse como valor bastante a cobrir capital e juros, caso o miserável não cumprisse. E avisava os mais pobres, alguns deles “criados” dela e da família poderosa: Agora vê lá se o teu homem bebe menos vinho e se pões o teu mais velho a trabalhar que já chega de escola.
Morreu de grande idade, a Menina Laurinha. Encontrei-a uma vez, inesperadamente, em Palma de Maiorca, numa excursão de veraneio. Aproveitava os últimos anos, que bem merecia algum prémio pelo que tão bem tinha sabido orientar a vidinha. Não casou nem nunca lhe conheci amores. É natural. Com a falta de carnes e aquele oiro todo, bem se livrou de algum malandro que lhe quisesse arejar a fortuna. Deve ter morrido tranquila, rodeada de todos os santinhos de que sempre tratou com esmero e devoção profunda.
Bem dizia o leader partidário que há pouco ouvi. Nada de novo nos mecanismos de exploração. A Menina Laurinha era tal e qual os senhores do FMI. Até feiazinha como eles.

Licínia Quitério

20.5.11

A MATILDE



A Matilde está sempre bem disposta, enérgica, faladora. Gosta dos clientes e os clientes têm respeito e carinho por ela. É ainda uma jovem, morena de olhos negros, sem pintura, que a cor do sorriso basta para a embelezar. Sabe muito do seu ofício. Dá atenção às perguntas dos agricultores que a consultam. Conhece todos os bichos nefastos às hortaliças, às árvores, às flores. Fala das pragas no tempo exacto em que se anunciam e avisa dos cuidados a ter, dos prazos a respeitar. Pergunta pormenores sobre o aspecto das espécies doentes, pensa um pouco e arrisca um conselho, sem imposição, apenas com a autoridade que o saber reconhecido lhe confere. Pergunta pelas melhoras do limoeiro que teimava em adoecer e fica feliz por saber que o remédio resultou. Atende várias pessoas ao mesmo tempo. Dá os “bons-dias”, as “boas-tardes”, diz “está boazinha?”, “desculpe lá a demora”, “escolha à su vontade”, com a pronúncia cantada de camponesa para camponeses. A loja da Matilde é um lugar apertado, onde ninguém está mal-disposto e ninguém discute sobre a vez de ser atendido,  graças, em boa medida, à Matilde que sabe gerir os produtos e o bem estar das pessoas. Os pretextos que eu invento para ir à loja da Matilde, eu que não sou camponesa! Hoje trouxe um mangerico, ainda “em planta para dispor”. Quis um saquinho de plástico transparente que deixasse ver a minha plantinha. A pouco e pouco tenho ganho alguns créditos na loja da Matilde. De vez em quando meto conversa com um ou outro cliente e sempre aprendo alguma coisa dos estragos da geada, do atraso da batata, do preço do adubo e até reciclo o meu vocabulário. Ali um tomate chama-se um tomate e  não um legume, e a nabiça tem rijeza e não fibra. Pessoa influente da minha terra esta Matilde, com  a sua pequena loja com cheiro a terras, a pimentos, a amores-perfeitos.

Licínia Quitério

13.5.11

TRANSGRESSÕES



Colhidas à beira do passeio, pendentes de muro de jardim abandonado, rosas de toucar, garridas e de curta vida. Postas em jarra de vidro de outra geração, arrumadas sem esmeros de florista,  por alguns dias vão ser um sorriso aberto e generoso sobre a minha mesa de saudades. Gosto de me picar a colher rosas com cheiro a beijo roubado. Gosto de fazer caminho proibido sobre a relva e aposto que ela gosta de sentir a leveza súbita dos meus passos. Nas infantis transgressões, encontro o sabor indefinível da liberdade. Como Gabriela, eu nasci assim: sapato não, seu Nacib.

Licínia Quitério 

12.5.11

PARECEU-ME




Pareceu-me avistar um melro junto ao candeeiro. Fotografei-o antes que se escondesse atrás do arbusto. Na foto, o melro, se o era, não passa de um ponto negro, mas nela apareceram o meu ninho, o ninho dos meus amigos, as torres que me viram nascer, o velho eucalipto, o novo jardim e talvez, quem sabe, um longo capítulo duma história que em mim se anda a escrever.



Licínia Quitério

Nota: Texto e foto são a minha colaboração desta semana em http://outrostemas.blogspot.com/, um lugar a visitar e acompanhar.

6.5.11

LEITURAS




À MEMÓRIA DE RUY BELO, POR EUGÉNIO DE ANDRADE.
DOIS DOS "MEUS" POETAS.
UM TEXTO QUE GOSTO DE LER, ASSIM COMO QUEM REZA.

Licínia Quitério

5.5.11

UM DIA DE VIDA



Defendida por fortes espinhos, de corpo suculento, guardador das ínfimas águas, multiplicando-se em novas redondezas que de si são cópias, esta mãe de bairro pobre todos os anos anos me dá filhas-flor, suavíssimas, gloriosas, sedas puras. No dia de vida que lhes cabe, aguardam o despontar da luz e abrem, dadivosas, formosas, donzelas sem vício e sem cuidado. Com o cair da tarde, vão fechando as corolas, imperceptivelmente, até que a noite as faz murchar, tombar, sem se ferirem, sobre os espinhos da mãe. Cumprem as suas vidas brevíssimas e plenas que eu aguardo e vigio, num misto de enlevo e melancolia.

Licínia Quitério

2.5.11

BANDEIRA



Apoiada no muro pintado de inverno, entre plantas pobres, cansadas, arrendada pela insolência do granizo, ameaçada pela gulodice de insectos, eis a  flor, seda vibrante, labareda de um fogo muito antigo, soluço vermelho, canto de galo na madrugada, sino de festa, vida, vida. Bandeira vitoriosa do meu jardim de vasos.

Licínia Quitério

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