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26.3.08

ERA TÃO ENGRAÇADO 4

E logo agora que a Isa acedera a casar-se com ele. Jovem, banal, sentiu a atracção daquele homenzarrão sábio e carinhoso que lhe dispensava ternuras de pai e lhe acenava com promessas de amante que nunca tivera.
Há muito que ninguém o via tão feliz. Ia finalmente ter a sua almejada Primavera. Depois daquele ataque de tosse inesperado e violento que o deixou prostrado e ofegante, perguntou-lhe mais uma vez, com olhos húmidos de cachorro sem dono, se aceitaria casar com ele. A Isa olhou-o, tocou-lhe a mão febril. Repetiu a pergunta, ansioso. Então ela disse, num fiozinho de voz insegura: “Sim”. Por isso mesmo, tinha de acabar com aquelas estúpidas andanças de médicos, exames, hospitais. A Isa tranquilizava-o. O que era preciso, antes de tudo, era tratar-se, curar-se. Quanto aos preparativos do casamento, ela iria, calmamente, tratando de tudo.
Não melhorou. A doença cumpriu os seus desígnios, implacável. Ficaram os amigos que faziam coro com os gracejos que foi desfiando até ao último fôlego. Falava dos reposteiros de veludo que finalmente poria no escritório. Da última prestação a pagar ao Senhor Ezequiel pela jarrinha de Cantão que tanto namorara. Simpático, o Senhor Ezequiel, mau grado aquela mania de o segurar, dir-se-ia com fúria, pela banda do casaco, enquanto falavam. Fazia planos para uma almoçarada com amigos. A refeição haveria de se fazer regar por um tinto monumental devidamente servido em duas colunas dóricas. Ou, pensando melhor, coríntias. Há dias que a Isa não aparecia. “Coitada, anda muito atarefada e eu aqui sem poder ajudá-la.". Em cena, a Commedia dell’Arte de que tanto gostava. Colombina a fugir. Arlequim sem pular. O Adorável Mentiroso…
Foi para o cemitério dos Prazeres. Que nome curioso para um lugar daqueles! O G gracejava com tudo. Praticava a festa das palavras. E aquela pensão que se chamava Dormidas da Estefânia! E aquela sua amiga, a Glória, do Ribatejo! E os dias cinzentos, de morrinha, a que chamava dia-gnósticos! E… E…

Os amigos demoraram a abandonar o novo lugar do G. Em pequeno bando, caminharam em direcção à saída, lentamente, apesar do Sol impiedoso, em silêncio dorido. Era como se, com o desaparecimento do G, as palavras, suas companheiras de brinquedos, também elas, se tivessem desconsoladamente recolhido. Foi já no limite do grande portão de ferro que um deles conseguiu soltar a voz e então, por instantes, não parou de dizer: “Era tão engraçado! Tão engraçado!”. Os outros olharam-no, olharam-se e repetiram, maquinalmente, em tom de oração: “Era tão engraçado! Tão engraçado!”.
Agora já podiam separar-se.
Ainda nenhum conseguiu esquecê-lo.

FIM

Licínia Quitério

17.3.08

ERA TÃO ENGRAÇADO 3

Fora casado, uma vez. Por amor, claro, como tudo o que fez na vida. Não durou muitos anos a relação. Adivinhava-se que alguma grande dor lhe tinha ficado, pela maneira ligeira, em suspiro, com que se referia, muito raramente, à Mulher. Conservador, católico não praticante, como se costuma dizer, fazia finca-pé na indissolubilidade do matrimónio. Por isso, só por isso, recusou, até a lei lho permitir, o divórcio. Embora gostando de muitas mulheres, continuava a amar a “sua” Mulher. Filhos, tinha havido, nados-mortos. Lamentava, mais por ela, a pobrezinha, de maternidades frustradas, que por ele.
Era conhecido e estimado no seu bairro da Lisboa antiga, como um prior de aldeia. Para os mais velhos, o Menino Jorge, para os mais novos, o Senhor Doutor. Não era licenciado, não era vaidoso, mas fazia questão de não esclarecer o equívoco. Explicava: “Não vou desapontá-los. Assim são mais felizes.”
No rés-do-chão do prédio que habitava, funcionava uma padaria. Quando chegava a camioneta da lenha, as coisas complicavam-se na rua estreita e movimentada. O carro encostava de tal modo à casa que a porta do G ficava bloqueada. Nesses dias, telefonava para o emprego e explicava em tom lamentoso e algo enigmático: “Não posso sair de casa enquanto não descarregarem a lenha.” Até que um dia o vizinho, pedindo desculpas pelo repetido incómodo, lhe disse: “O Senhor Doutor só tem que me pedir a chave do carro. Depois, entra por uma porta e sai pela outra.” Ficou deliciado e não perdia a oportunidade de atravessar a viatura que afinal, como comentava, tinha porta para o Paraíso.
Não tinha carro, nem carta de condução. Gostava de viajar em transportes públicos, onde colhia elementos para histórias deliciosas que depois contava, divertidamente teatralizadas. Tinha processos muito próprios de atrair as atenções. Frequentemente, lia um livro ou um jornal de pernas para o ar e espiava, deliciado, os olhares algo aflitos dos passageiros perante aquele senhor tão bem posto e que afinal parecia ter um parafuso a menos.
Não se interessava muito por viagens. Preferia as suas viagens interiores, os seus mundos sonhados, sem horários nem cansaços. A primeira e única vez que foi a Londres, por obrigações de serviço, pouco saiu do bairro em que, dizia, as casas eram todas irritantemente iguais, parecidas com jazigos de família. Passeou por Saint James Park, mas, para além de cisnes e pessoas mal vestidas, pouco mais encontrou. E depois, falavam todos inglês, aquela língua horrorosa... Para ele, o francês, isso sim, era la langue de Dieu, mesmo quando dela se servia para dizer: “Volto já. Vou ao cabinet d’essences”. Se estava ocupado, batia com os nós dos dedos na porta, com suavidade, e gemia, desta vez em italiano: “No po più”. Invariavelmente, o ocupante, intrigado, apressava-se e dava-lhe o lugar.
Dele se pode dizer que não devia ter morrido tão cedo. Mal tinha passado do meio século, quando a doença se mostrou, óbvia, ameaçadora. Não tinha paciência para estar doente. Levou para os hospitais a tradução de espanhol de um livro sobre arte em que andava empenhadíssimo. “Que má altura para ficar doente!”, lastimava-se. “É que não tenho tempo!”.

(continua)


Licínia Quitério

7.3.08

ERA TÃO ENGRAÇADO (2)

Tinha um cágado chamado Horácio cujas unhas pintava de vermelho, sempre que terminava a sua letargia do Inverno, para, como dizia, lhe tornar mais alegre o regresso à Vida. O grande e velho andar onde habitava estava infestado de baratas, com que convivia sem repugnância, recusando que as envenenassem. Encarregava a gata preta, a Dona Antónia, de as afugentar, em correrias e saltos pelo corredor comprido, na calada da noite.
Quando se deitava, postava os sapatos a par, muito alinhados, virados para a porta. Dizia que não eram sapatos, mas barcos, e, como tal, deviam estar sempre prontos a zarpar do porto, apenas aguardando ordens do almirantado. A criada velha benzia-se: “O Menino tem cada uma! Já sabe que essas coisas me assustam!”.
A sua relação com o dinheiro era altamente dinâmica, ao ponto de o fazer sair antes de ter entrado, o que lhe permitia viver em deficit permanente que, aliás, considerava o único processo estimulante de gerir os proventos. Como era de uma grande seriedade, o saldo inquestionável dos seus compromissos permitia-lhe fontes de crédito totais e variadas. Costumava dizer que estava assegurando a imortalidade, porquanto fazia sempre os possíveis por não ter onde cair morto.
Detestava que lhe exigissem horários, prazos. Trabalhava quando queria e exclusivamente por prazer. Chalaceava, ditando aos amigos o epitáfio que gostaria lhe pusessem na sepultura: “Aqui repoisa quem nunca fez outra coisa”. Mas trabalhava muito, noite fora, como gostava, cigarro sobre cigarro, escrevendo, escrevendo, na mesa fradesca, rectangular. Abominava mesas redondas cuja ausência de cantos, afirmava, produzia a queda assídua dos cinzeiros, seus companheiros de vida e de morte.
Comia e bebia do melhor, nos mais elegantes restaurantes, durante a primeira semana do mês. Depois, até ao próximo ordenado, era cliente altamente considerado dos tascos castiços e algo imundos da cidade que era a sua. Quando o cozinheiro, a escorrer gordura, vinha propositadamente da cozinha, com o polegar enfiado no empadão a rescender na travessa, fazia-o por deferência para com o Xenhor Doutor que honrava a casa com a sua presença. “Dejejo que lhe xaiba às maravilhas.” E sabia. O G ficava bem em qualquer cenário, sem se constranger. Inconfundível.
Dizia gostar de ter sido Papa, que achava o cargo mais atraente do mundo. Ter-se-ia chamado Papa Açorda I. No seu escritório-biblioteca, tinha uma casula e outros paramentos, hieraticamente dispostos num cabide de pé. Nas vitrinas, um livro de cantochão, um cálix e respectiva patena e muitas outras preciosidades que ali tinham chegado por heranças ou por via das muitas visitas a antiquários que insistiam para que mantivesse a sua conta-corrente. Um figurão, este G.
Vivia em estado de paixão permanente. Procurava a frescura das mulheres jovens, a eterna primavera nas montanhas de que carecia para respirar fundo. Sofria, em profundidade, sucessivos desaires amorosos, nunca se deixando porém vitimizar. Quando, mais uma vez, uma rapariguinha de dezoito anos trocou os seus encantos de homem maduro e sabedor pelos ímpetos de um jovem macho afirmativo, lastimou-se por ter sido preterido por alguém com um defeito físico evidente. Qual? Usava óculos, o infeliz.
Os amores proibidos perturbavam-no. Não era homem de clandestinidades. Quando um dia se pegou de paixão por uma dama casada, ficou cheio de pruridos pela traição que, em seu entender, o pobre do marido não merecia. Cedeu, a custo, a todas as incitações e excitações da aventura, tanto quanto o picante da situação o convenceu. Mas a uma coisa resistiu: O pijama do marido, não. Recusou a pele do outro. Coitado, bastava-lhe a da mulher. Começou a ter pesadelos recorrentes: alguém o perseguia, de noite, na rua, com uma faca na mão. Acordava com o coração a pular, banhado em suor. Foi, talvez por isso, uma aventura com um único capítulo.

(continua)


Licínia Quitério

1.3.08

ERA TÃO ENGRAÇADO


Na tarde quente e suada do Verão lisboeta, a Isa apareceu, sozinha, apagadita, rente às árvores mais altas do cemitério. Sem chorar. O G não suportaria vê-la no papel de noiva inconsolável. Quando os rituais acabaram, afastou-se, ligeira, sem dar azo a conversas a que não saberia dar as réplicas convenientes. Ele não tivera tempo de lhas ensinar. Como não houvera tempo de saber tanta coisa sobre ele. Um dia, quando o G não fosse mais do que um relevo na planura da sua previsível solidão, tentaria juntar as peças do puzzle que pudessem enformar aquele bom gigante cuja queda almofadou com o jeito possível de menina tardia.

Do alto do seu metro e oitenta e tal, imponente na corpulência obrigatória de um chanceler alemão que se preze, o G irradiava o ar bondoso de um patriarca que perdeu a prole. O cigarro, dependurado na carnosidade do lábio inferior, tornava-lhe os olhos lacrimejantes, a lembrar um bebé de chucha, acabado de acordar. Vestia como um cavalheiro inglês da City, sacudia necessariamente a cinza que lhe manchava as bandas do blazer azul escuro, a gravata de seda de pequeninas bolas.

Para os colegas mais novos, era um guru que tudo sabia e ensinava-lhes que o mais importante da vida era descobrir o lado cómico que mesmo a tragédia esconde. O humor, dizia, era a arma mais poderosa para fragilizar num ápice os prepotentes, para ridicularizar os vaidosos, para limpar, sempre que possível, a vida das suas teimosas fealdades. Tudo o que era sombrio e agreste se desvanecia com um dito de espírito e uma gargalhada à medida. Brigas, não valiam a pena. Até porque nada tinham de engraçado.

Lia muito, carregava sacos amarrotados, cheios de livros. Era conhecido dos melhores alfarrabistas de Lisboa, onde catava raridades que depois mandava encadernar, à antiga, a preceito. Quando ficavam prontos, olhava-os embevecido, acariciava-os. Com o dedo indicador molhado em saliva, removia algumas pequenas máculas que só ele notava. Se alguém observava a falta de higiene do processo, respondia que o seu cuspo era santo e soltava um sorriso divertido perante a careta enojada do interlocutor.

Escrevia bem. Deixou obra, alguma publicada: contos, peças de teatro, poemas de amor. Gostava de abordar, por diletância apenas, temas esotéricos. Conversava sobre eles com uma sua amiga, exótica senhora que tinha pintado de azul o gatinho branco e que insistia com os convidados para que provassem sopa de jarros, tratados e cozinhados por ela. A essas tertúlias comparecia gente estranha e algo alucinada que o divertia imenso e que, por sua vez, muito apreciava as suas divagações filosóficas sobre o significado da elipse, da hipérbole e da parábola. Era assim. Naturalmente eleito em ambientes os mais diversos.

(continua)

Licínia Quitério

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