Na tarde quente e suada do Verão lisboeta, a Isa apareceu, sozinha, apagadita, rente às árvores mais altas do cemitério. Sem chorar. O G não suportaria vê-la no papel de noiva inconsolável. Quando os rituais acabaram, afastou-se, ligeira, sem dar azo a conversas a que não saberia dar as réplicas convenientes. Ele não tivera tempo de lhas ensinar. Como não houvera tempo de saber tanta coisa sobre ele. Um dia, quando o G não fosse mais do que um relevo na planura da sua previsível solidão, tentaria juntar as peças do puzzle que pudessem enformar aquele bom gigante cuja queda almofadou com o jeito possível de menina tardia.
Do alto do seu metro e oitenta e tal, imponente na corpulência obrigatória de um chanceler alemão que se preze, o G irradiava o ar bondoso de um patriarca que perdeu a prole. O cigarro, dependurado na carnosidade do lábio inferior, tornava-lhe os olhos lacrimejantes, a lembrar um bebé de chucha, acabado de acordar. Vestia como um cavalheiro inglês da City, sacudia necessariamente a cinza que lhe manchava as bandas do blazer azul escuro, a gravata de seda de pequeninas bolas.
Para os colegas mais novos, era um guru que tudo sabia e ensinava-lhes que o mais importante da vida era descobrir o lado cómico que mesmo a tragédia esconde. O humor, dizia, era a arma mais poderosa para fragilizar num ápice os prepotentes, para ridicularizar os vaidosos, para limpar, sempre que possível, a vida das suas teimosas fealdades. Tudo o que era sombrio e agreste se desvanecia com um dito de espírito e uma gargalhada à medida. Brigas, não valiam a pena. Até porque nada tinham de engraçado.
Lia muito, carregava sacos amarrotados, cheios de livros. Era conhecido dos melhores alfarrabistas de Lisboa, onde catava raridades que depois mandava encadernar, à antiga, a preceito. Quando ficavam prontos, olhava-os embevecido, acariciava-os. Com o dedo indicador molhado em saliva, removia algumas pequenas máculas que só ele notava. Se alguém observava a falta de higiene do processo, respondia que o seu cuspo era santo e soltava um sorriso divertido perante a careta enojada do interlocutor.
Escrevia bem. Deixou obra, alguma publicada: contos, peças de teatro, poemas de amor. Gostava de abordar, por diletância apenas, temas esotéricos. Conversava sobre eles com uma sua amiga, exótica senhora que tinha pintado de azul o gatinho branco e que insistia com os convidados para que provassem sopa de jarros, tratados e cozinhados por ela. A essas tertúlias comparecia gente estranha e algo alucinada que o divertia imenso e que, por sua vez, muito apreciava as suas divagações filosóficas sobre o significado da elipse, da hipérbole e da parábola. Era assim. Naturalmente eleito em ambientes os mais diversos.
(continua)
Licínia Quitério