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27.11.10

CHEGOU

Nada sabe do mundo a que chegou há pouco. Mama, dorme, chora e já sorri. Crescerá, o seu corpo mudará e o mundo mudará com ela. Uma ínfima partícula do universo, ainda infante. Da voz à fala chegará. Nomeará então as coisas e o céu e o sol e a lua e os homens e as mulheres. Caminhará sobre os seus passos que outros não lhe serão dados. Em algum tempo, terá uma flor em cada mão, estrelas no olhar e na boca bagos de romã. Construtora da própria vida, espectadora e actriz no imenso palco onde representará a sua história. Única, irrepetível, a Mulher que agora começa.

Licínia Quitério

OS MENINOS

Chegam em qualquer mês,
em qualquer dia.
Os meninos.
Como as flores,
que as há de todos os tempos.
Como os beijos que não sabem a hora.
Entram-nos em casa
e procuram-nos o rosto.
Trazem recados de outros tempos
e nós não os sabemos decifrar.
Vêm do ventre das mães,
feitos de sangue novo.
Em que pensam? dizemos.
Nunca o saberemos.
Guardam segredos
que não podem revelar.
Quando puderem
já os terão esquecido.
Inviolável o seu tesouro de meninos.
Chegam com os ventos altos,
com as areias, com as cores do outono.
Sempre chegam, os meninos.
Por eles somos e nada sabemos.


Licínia Quitério



SINTRA

Não tarda que desça o véu de brumas cinzentas a ocultar recortes de castelos e conventos nos cumes da serra. Choram os penedos e o manto líquido escorre encosta abaixo, mansamente, dissolvendo os tons das velhas casas, dando um novo brilho às folhas ainda presas nas árvores do outono. Por todo o lado, ganham forças novas as trepadeiras nos seus abraços seculares aos muros, às paredes das casas. Espiam as janelas, as falta dos vidros, as falhas das madeiras, e deitam contas ao tempo de aventuras nos interiores das salas vazias de gente. Antigos lampiões, enferrujados, aguardam a noite, seu palco de brilhos de uma última velhice. A Lua, sua única rival, senhora da serra, erguer-se-á, uma destas noites, serena e pálida, e cobrirá de prata todos os verdes, todos os muros, todos os caminhos de serpente. Alguém se há-de perder nas cruzes das veredas e caminhará, em frente, sempre em frente, até ao novo dia. Retirada a Lua para a sua casa do céu, o caminhante terá a alvorada mais clara de todos os seus dias. Descerá a serra com o novo saber no coração. É sempre um outro o homem que se perde na serra e a desce ao amanhecer.

Licínia Quitério

A BUGANVÍLIA

Vive há muitos anos apertada num vaso grande, de barro. Não tem chão para alongar as raízes, procurar frescuras, trocar cumprimentos com pequenos animais. Sofre, a minha buganvília, mas teima em viver, com uma força que só é permitida a uma frágil planta. Inventou estratégias de sobrevivência que me desconcertam. Duas vezes floresce, em cada ano, duas vezes se reduz a hastes aparentemente secas, espinhosas. Fico sempre triste e digo: Foi agora que desistiu. Num resto de esperança, dou-lhe alguma água que é tudo o que lhe posso dar. Para ali fica, semanas a fio, sem sinal de vida. Até que um dia, e de novo agora aconteceu, explode em ramos novos, verdes, tenros que rapidamente se deixam polvilhar de flores vistosas, galantes. Eu sorrio e ela também, juro. Sobreviventes, teimosas, de raízes apertadas, ambas poupamos energias até florir de novo, ainda, em dádiva de cor, inverno fora, para espanto de quem passa.

Licínia Quitério

JARDINS

Os jardins públicos de hoje são diferentes dos de outros tempos em que a floricultura era mais amor e suor de jardineiro e menos cultura intensiva, pronto a plantar, pronto a arrancar e a substituir. Hoje, nos jardins públicos, as plantas, em regra, não cumprem os seus ciclos de vida. Num dia é a profusão das petúnias, no outro a dos amores- perfeitos. As begónias duram mais, muito certinhas, calibradas. As sálvias só lá estão enquanto as florações vermelhas não se atreverem à esperança de frutificarem. No dia seguinte vem o carro grande, com as ferramentas luzidias e arranca-as todas. Logo se segue outro carro, quem sabe com sempre-verdes, gémeos todos de forma e volume. São outros os tempos e a indústria das flores (como me incomoda a expressão) tem as suas regras, os seus objectivos a cumprir para que se mantenha "viável".


Pois os jardins andam bonitos, sim senhores, e eu vou-me habituando a que as flores também passaram a ser objectos descartáveis.

Feliz fico quando encontro um jardim à antiga, com espécies diferentes em convivialidade, nos seus diferentes tamanhos, nas suas diferentes idades. E as canas! As canas na sua função de esteios a assegurar aprumos. Como podem as dálias crescer sem encurvar se não forem as canas? Jardins anárquicos, com tempos de vida e morte natural. Não geométricos, não assépticos, não formatados, também eles, como outros seres viventes que conhecemos.




Licínia Quitério

MÃE

Tu sabes, Mãe, eu sou assim, esqueço-me dos dias assinalados no calendário dos homens. Sei do dia em que nasceste, mas não sei bem o dia em que te foste embora. Estiveste comigo durante muitos, muitos anos. Tantos que me habituei à ideia de que estarias sempre ali para me dizeres: Filha, não andes tão à pressa. Eu sei ...que tens muito que fazer, mas senta-te um bocadinho aqui. Tenho muitas coisas para te contar. Poucas vezes me sentei ali, a escutar-te. E a tua voz era tão bonita! Tão cheia de risos e de cantos e de outras vozes que reproduzias na perfeição. Mas eu tinha tanto que fazer. Eu tive sempre tanto que fazer. Hoje que já não tenho tanto para fazer, lembrei-me, vê lá tu, de me sentar aqui um bocadinho a recordar todas as histórias que não tive tempo para ouvir. Conta lá, Mãe, conta. Com a tua voz límpida, com as tuas mãos de gestos serenos a sublinharem, com elegância, o discurso directo que dá tanto colorido aos teus relatos. Sabes, Filha.... Não, Mãe, conta lá.

Licínia Quitério

A CIDADE

O cinzento opaco do céu escureceu a cidade anunciando o aguaceiro. Não tardou. Chuva grossa, pesada, apressada, tanta que a cidade não a conseguiu beber toda. Por algum tempo as ruas da cidade baixa fizeram-se leito de rios de águas escuras, gordurosas, a invadir as casas, a imobilizar os carros. Os homens trataram de expulsar a água das casas aflitas, de secar os rios de ocasião.


Cansado daquele grande choro, o céu foi clareando, primeiro quase a medo, logo logo mostrando amplos rasgões de azul. Era a bonança.

Nas colinas, a cidade, ali escorrida e quase enxuta, movia-se, na sua cadência de todos os dias. Foi quando reparei na couve e nos girassóis e no alecrim crescendo em torno da árvore, e na rede protectora da horta-jardim. Mesmo ali, no meio do passeio, olhando a Sé lá ao fundo e o vinte-e-oito que sobe que desce que sobe que desce. Matreira, esta cidade das couves inesperadas, perto, muito perto do Pátio do Carrasco, envergonhado, espreitando a garridice das Portas do Sol. Não há chuva que lhe tire esta ironia, este sorriso malandro que nos atira em cada esquina. E eu gosto dela assim.

Licínia Quitério

A SALAMANDRA

A minha salamandra envelheceu. A pele enrugou, as articulações desgastaram-se. Já não aguenta o lume. Não admira. Foi uma longa vida de serviço à casa e a quem a habitou. Através do vidro, deixava ver o fogo e o seu bailado de chamas rubras. Espalhava pela casa um calor bondoso que punha mansidão nas falas e brandura n...os gestos. As paredes ainda conservam memórias dos serões da salamandra, como foram chamados. Ali permanece, com a elegância de uma velha senhora que tem um longo passado de horas calorosas e histórias desses tempos que conta a quem as quer ouvir.

Licínia Quitério

CHOVEU

Choveu. Eu dormia e a chuva caía. Quando abro a janela há um cheiro bom de terra molhada. A malva-rosa enxuga as lágrimas. Os espargos parecem quebrar de tão tenros. Os mal-me-queres estão tristes, de corolas fechadas, zangados mesmo. A gata recusa o passeio matinal. Volta a ronronar, sem preocupações de relógio ou calendário. Eu inauguro a viagem assinalada no mapa do dia. Brinco às escondidas com um sonho antigo. Quem sabe agora? Quem sabe nunca?

Licínia Quitério

O BANCO

Que faz ali aquele banco? Por detrás tem uma bonita sebe e pela frente, mesmo à beirinha, uma rua antiga e estreita onde passam carros. Que se pode fazer sentado naquele banco novinho em folha? Ler? E o barulho dos carros zz zzz! Conversar com alguém? Porquê ali, de cabecinha ao sol, mesmo rente à rua zzz zz? Um banco destes tem de fazer parte da história da terra. Tem de receber os velhos a procurarem a sombra, tem de sentir os pés das crianças traquinas a empoleirarem-se-lhe nas costas, tem de ouvir segredos de namorados à noitinha e conversas banais dos que a ele se encostam porque não têm tempo de se sentarem. Um banco em lugar público tem de ser a extensão da cadeira de lona do nosso alpendre, um cúmplice do nosso olhar sobre a pele dos dias. Verdade, verdadinha, nunca vi ninguém sentado neste banco. Foi por isso que não tive pudor em fotografá-lo.

Licínia Quitério




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