Apetece-me
escrever cartas de amor, daquelas bem ridículas que se escrevem para nunca
serem lidas, porque, dizem, o ridículo mata e eu já não tenho idade para morrer
de amor. Que há uma idade para morrer e também uma idade para o amor.
Façamos
de conta que tenho dezanove anos, ou mais, vinte e nove, é melhor assim, quase
trinta, a tal idade de Balzac, mas isso era no tempo de Balzac, quando as
mulheres começavam a amar muito cedo e deixavam de amar também muito cedo. Não
decidi ainda como começar a carta, um princípio é sempre um tempo tão difícil,
um passo no escuro, uma escrita na água, tudo tão incerto, tão sem propósito
nem feitio. Meu bem, meu amor, meu X. É-me indiferente, desde que seja
declaradamente possessivo. Não, é melhor dizer apenas nome dele, em diminutivo,
um pequeno carinho, as mulheres gostam de diminutivos, em inho, em ito, o
Zezinho, o Joãozito. Os homens preferem encurtar os nomes delas e reduzi-los a
uma, duas sílabas, a Bé, a Zuca. Pelo menos era assim no meu tempo de ensaiar
paixões, de as inventar, de as matar antes de terem nascido.
Vou
mesmo começar a escrever cartas de amor.
CARTA 1
Lauro,
Escrevo-te
para te dizer que aprendi a amar-te muito tempo antes de te ter encontrado
naquela noite, naquela sala de música e conversa, quando não éramos mais do que
passageiros de vidas únicas, solitárias, livres. Reconheci-te, de outros
encontros, de outros livros, de outros filmes, de outras batalhas, de outros
caminhos por onde provavelmente nunca passaste e nem eu mesma sei se os
percorri. Quando me disseste, o que achas disto, e te referias a um vago
projecto que os teus olhos já desenhavam, eu respondi-te qualquer coisa como, é
isso mesmo que eu quero, com uma tal certeza nas palavras e na voz que uma
interrogação se cravou na tua testa e as minhas mãos se moveram, perdidas de
mim.
Não
era tarde nem cedo, nem noite, nem dia. Era o olho do furacão, era a brancura
do alvo, era água a nascer. Era também alguma ave que morria, que eu bem vi a
pluma que poisou na mesa e tu sopraste, e eu soprei, e eu disse princípio e tu
disseste fim.
Terá
sido este o tempo de começar o amor. É o que eu digo daquela noite. Será assim,
ainda que digas que não estiveste lá, naquela sala, naquela noite. Há
pormenores que não devem constar de uma carta de amor. Há palavras que não
pertencem ao amor.
Deixo-te
um beijo.
Laura
CARTA
2
Lauro,
Conforme
queria dizer-te na carta de ontem, eu já te sabia de cor havia muito tempo,
daquele saber sem tradução em língua viva, talvez nascido numa fala tão antiga
que dela não podemos ter memória. Poderias vir ao meu encontro, ou não, em
qualquer volta da estrada, num amanhecer de lírios ou numa noite de cardos. O
teu rosto seria apenas um rosto, sem idade, um rosto que espera o seu tempo de
madurar ou desistir, com uma ruga ondulante a atravessar a testa, o sinal da
tua chegada que eu haveria de acolher, no mais doce campo de silêncio das
nossas vidas.
Um
dia havias de me dizer que tudo não passou de uma folha de cálculo de
probabilidades, do comprovativo de uma das leis de Murphy, pura matemática,
pura abstracção, que o amor não era mais do que uma teoria dos limites, nunca
provada, porque assim devia ser. Eu nunca soube de ciência, nem de leis
universais, nem de números ímpares, e muito menos de quadrantes solares que tu
te esforçavas por construir, em salas sombrias que me entristeciam e onde,
dizias, estava tudo, sendo tudo o mesmo nada de que te alimentavas. Isso foi
depois. Voltarei ao assunto noutra carta.
Hoje
recordo o relâmpago nos teus olhos, naquele primeiro encontro, quando, à
despedida, eu só fui capaz de dizer, sei exactamente como és, e tu nada
disseste, e deixaste escapar um sorriso desajeitado, de quem teme a nudez e a
deseja.
Ainda
hoje te vejo com esse sorriso.
Fica
um beijo.
Laura
CARTA
3
Lauro,
Escrevo
esta para te dizer que finalmente arrumei os papéis daquele monte, sempre a
ameaçar ruir, que fomos juntando, porque podiam vir a ser precisos, este fica,
este também, que mal faz ficar aqui, depois deitamos fora, agora não, há muito
trabalho à nossa espera, há muita gente à nossa espera, há tempo, há sempre
tempo, dizias. E foi assim mesmo. O tempo não faltou à chamada. Faltaste tu e
até eu faltei. Os papéis, esses, continuaram lá, a somar desequilíbrios, a
exercitar derrocadas. Cheguei a pensar que tinham vida própria, que me
espreitavam, que me provocavam, que se riam da tua inércia, da nossa inércia,
da nossa vaidade de termos tempo, da nossa incapacidade de arrumar passados.
Foi
numa destas tardes de morrinha, quando as estações do ano se baralham e as
nossas dores também, que decidi mergulhar na pilha de folhas de todos os
tamanhos, de todas as cores, a guardarem capítulos da nossa história. Puxei uma
delas, e outra mais acima, e outra mais recolhida, e outra, e muitas, muitas outras,
até sentir apoderar-se das minhas mãos um frenesi e o meu corpo num balanço,
ano acima, ano abaixo, vida acima, vida abaixo, a desfazer o que tanto tempo
nos levara a edificar.
Era
já tarde quando o cansaço me fez parar, com uma dor a ameaçar-me o peito, como
se fosse desatar num choro, mas, tu sabes, eu raramente choro. Adormeci ali
mesmo, na cadeira junto à mesa, a pilha desfeita, o chão atapetado de folhas de
papel.
Comecei
esta carta a dizer-te que arrumei finalmente os papéis. Foi o que fiz. Vão
ficar ali no chão, espalhados, tal qual as folhas do Outono na nossa rua. Na
Primavera, se ainda não tiveres voltado, talvez arranje uma árvore onde os
pendure e fique à espera que a nossa história, qualquer dia, se abra em flor.
Espero
que tenhas gostado de saber.
O
beijo.
Laura
CARTA 4
Lauro,
Há já bastante tempo, escreveste-me uma carta que
trazia por remetente o teu nome e um número de guerra. Não era bem uma carta,
era um papel dobrado e fechado que servia de carta e de envelope. Isto foi num
tempo estranho que nos aconteceu e em que as mulheres recebiam papéis assim
dobrados e fechados, que abriam com o coração a bater muito, sabiam lá elas se na
mão que tinha escrito ainda corria sangue de vivo ou se o dono da mão já não
estava a ela preso.
Foste sempre de poucas palavras e todas as que quiseste
dizer couberam naquele arremedo de carta. Não vou repetir o que escreveste, o
papel já se sumiu na voragem das mudanças, mas sei de cor as palavras, ainda
tenho uma boa memória. Fiquei parada no lugar, no tempo, o papel suspenso nos
dedos ou os dedos suspensos dele, e já a tarde se encobria quando comecei a
andar, a andar, não sei para onde, não me perguntes, a gente às vezes anda
porque tem de andar, não pode fazer mais nada, e depois é difícil parar, lembro-me
de ter parado porque alguém perguntou, onde vais, e eu pensei que era alguém
com a tua voz, e parei, e voltei ao lugar fora de tempo donde tinha partido, o
papel sempre suspenso dos dedos da mão.
Nunca
respondi a essa carta, que não era bem uma carta, porque nela dizias que não
tinha resposta, que não querias saber de resposta, isto já eras mesmo tu a
avisar que o tempo e o lugar estranhos que te tinham cabido não seriam nunca explicados,
as coisas não se explicam, entendem-se ou não, como costumas dizer.
Nem
penses que hoje ensaiarei uma resposta, neste meu recente afã de te escrever,
de me escrever. Apenas deixo estas linhas como se fossem uma carta-resposta a
outra que nem talvez tivesse chegado, que, sabes bem, eu às vezes deliro e tu,
paciente, olhas-me com aquele sorriso de sempre, tão desajeitado.
Tua
Laura
CARTA 5
Lauro,
Venho dar-te notícias do Inverno por aqui. Presumo que para ti continuem a não ter grande importância as estações do ano, já que passas por elas sem as nomeares, nem as aplaudires, nem as exaltares. Adivinho que continuas com o botão da camisa aberto, aquele junto ao pescoço, só um, que no Verão abres dois e assim contentas as pessoas que se admiram de não mudares de vestimenta. Eu não, eu continuo a ser a rapariga que tem muito frio, muito calor, que fala do tempo como qualquer britânico que se preze, que gosta das estações dos equinócios e não do Sol a pique, nem da neve. Nunca me esqueço daquela vez que subimos a uns dois ou três mil metros de uma montanha de um país, que hoje já nem se chama assim, e tu em mangas de camisa, e a quem te dizia, não tem frio, tu respondias muito naturalmente, estamos no Verão, e estávamos, assim diziam os calendários e o dia esplendoroso no sopé da montanha. É essa a tua lógica de viveres, eu sei, embora às vezes me aflija, sem saber se estás presente ou ausente, porque esse olhar está em todo o lado e em parte nenhuma e eu, sim, também sou de ausências, mas é diferente, eu sou mais presa aos dias, enquanto tu há muito te libertaste do incómodo dos objectos, das conversas vãs, das datas que toda a gente carrega como marcos de comemorações, alegres ou tristes, próximas ou distantes. Um dia também serei assim, como tu, ou como imagino que tu és, e isso será no Inverno em que estaremos juntos de novo, não neste ainda, que está carregado de frios e de troncos cinzentos, e era disso que eu te queria dar notícia ao começar esta carta, mas, tu bem dizes, miúda vamos ao que interessa, a abreviares o assunto, e fazes bem porque quando começo a falar nunca mais me calo.
Pelo sim, pelo não, fecha o segundo botão da camisa.
Um beijo.
Laura
CARTA 6
Lauro,
Espero que estejas bem, meu amor. Escrevi “meu amor” e logo me admirei do vocativo que uso tão pouco, menos ainda do que tu, na nossa devoção pelo sentido das palavras que não devem ser desperdiçadas, poluídas, na usura da banalidade, do automatismo que as menoriza, as mata. Hoje disse e agora sei porque o disse, mas não vou explicar, tu logo adivinharás, mesmo estando aí, nesse lugar tão longe e tão perto. Adivinhação tem sido um dos nossos jogos de muito silêncio e fortes respirações e de uma faiscante alegria quando quase gritamos a solução, em uníssono, triunfantes por instantes sobre a vida, sobre a morte. Não encolhas os ombros, no habitual disfarçado apreço pelas minhas divagações, a espicaçar-me a vontade de ir mais fundo, mais além. Eu tento, eu esforço-me, e por vezes encontro o caminho, a rua, a página, a palavra certa para chegar ao velho, à criança, ao estropiado, a um dos simples que tu elegeste e me adoptaram.
Mudando de assunto. Nem imaginas como os putos cresceram. Altos, bem mais altos do que tu, uns homens no patamar das vidas, simpáticos, desprezando brilhos, parangonas, atentos às pequenas coisas, saboreando-as, numa postura de homens-crianças que assim hão-de ser, espero, por muito mais tempo.
Um regresso é sempre um balcão de espantos. Prepara-te para o dia. Não te apresses que ele há-de chegar, disso sabemos.
Amo-te.
Laura
CARTA 7
Lauro,
Aí por onde
andas agora, duma coisa tenho a certeza, nunca de mim dirás a “minha mulher”,
ou a “minha” companheira, ou a “minha” seja o que for. O meu nome dirás, ou o
nome que me deste e que é meu também, precedido do artigo bem definido “a”.
Nunca fui tua nem tu és meu. Somos assim, dois, não os mesmos, bem diferentes,
a cada um a sua virtude, a cada um o seu defeito, a cada um o seu gostar, o seu
fazer. De tão desiguais que somos se faz uma peça única, na alegria e na
tristeza, na celebração dos ritos, no não dito desencanto. Não decoraste a cor
dos meus olhos, nem dos meus cabelos, mas sabes de cor a minha voz e eu a tua,
cada uma com seu timbre, único, intransmissível, todavia conjugáveis. Se
tivesses um duplo, um duplicado, um outro igualzinho ao que de ti sei, e ele
cruzasse o meu caminho, talvez eu me perdesse e na próxima carta te dissesse,
de certo modo já voltaste, de certo modo não te foste embora. Sei que, se isso
pudesse acontecer, dirias, tu é que sabes, ainda que a tua mão tremesse e
acendesses mais um cigarro, havendo outro a arder no cinzeiro. Não, por agora é
por ti que espero, imperfeito e original, de liberdade feito, impaciente nos
dias, meditativo nas noites, afirmando não saber de poesia, que isso é comigo, a
indicar-me o caminho sem nunca o dizeres, a preparar a viagem sem nunca dela
falares. Lembrei-me hoje de te falar disto, da diferença que fizemos, que
fazemos, porque encontrei aquele amigo que era teu e passou a ser meu também, o
A., e referiu a noite da passagem de ano em que eu bebi demais e desatei a
falar sem parar. Foi o serão em que eu declarava, disse o A., para que todos
soubessem, numa repetição inflamada, “com ele eu sou eu, com ele eu sou eu, com
ele…” e tu olhavas-me, sorrias e abanavas a cabeça, numa fingida censura ao meu
entusiasmo, à minha exuberância desusada. Confesso que me senti um pouco
envergonhada com a lembrança que o A. me trouxe, tantos anos depois, de que já
não me recordava e que agora aqui te trago, nem sei bem porquê, ou sei, mas não
te vou dizer hoje. Tu adivinharás, sempre adivinhas.
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