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25.7.16

OS ESCRITORES


Os escritores enchem de jóias o cofre da Humanidade. São guardiões da memória e construtores do sonho. Enfiam as palavras em lágrimas e sangue e dão-nos fios de coragem e de ternura com que afugentamos a mesquinhez das pequenas vidas. Eles contam, contam-nos, inventam, inventam-nos, avisam-nos, mergulham nos nossos silêncios e falam por nós. São a consciência dos homens e dos povos. São perseguidos, escarnecidos, vilipendiados, ignorados. Os poderes adulam-nos ou apagam-nos. Temem-nos. Eles possuem o ouro da palavra que resiste à usura, ao tempo dos dinheiros.

Licínia Quitério

16.7.16

NÃO HÁ LONJURAS



Um cão ladra continuadamente em Nice e eu oiço-o aqui, quase em simultâneo, na minha bancada de observar o mundo. Ontem ao serão, ouvi distintamente, também "em directo", como costuma dizer-se, o tiroteio na Turquia. Tudo acontece em ricochete na minha bancada. O mundo encolheu, não há lonjuras, um homem grita na outra metade do paralelo e eu oiço-o, eu entendo a sua língua que é já a mesma, planetária, interplanetária. Todos os segredos podem ser violados, mesmo ainda dentro das nossas cabeças. É o admirável mundo novo. Um cão ladra em Nice, e eu, à beira da bancada, abro os olhos, os ouvidos, o espanto, e não entendo, não entendo por que razão aconteceu este medo que perpassa no mundo, "em directo", como costuma dizer-se.

Licínia Quitério

9.7.16

O CR7


De facto, o Rapaz é uma máquina humana que se supera e se eleva e consegue o inconcebível. Toca a bola como quem toca o mundo, segreda-lhe a trajectória, obriga-a a cumprir o seu destino. O Rapaz solta um urro que vem das profundezas, retesa os músculos, é o dono do mundo por instantes. É um ser extraordinariamente poderoso, estátua viva do Olimpo terreno.

É o CR7, o Rapaz do nosso contentamento.

Licínia Quitério

O NINHO


A menina soube um ninho
Caído no chão, coitado.
Lá dentro, um ovo quebrado.
Não vai nascer passarinho.

Assim a vida termina
Antes de ter começado.
Assim o ninho guardado
Em palma de mão-menina.


Licínia Quitério

5.7.16

JUNO



Um engenho produzido por humanos terráqueos orbita a partir de agora o maior planeta do sistema solar. Chama-se Juno, a deusa mulher de Júpiter que vê através das nuvens, e durante um par de anos mandará notícias daquelas paragens que ajudarão ou não a melhor compreender as origens, as razões, os destinos. É o Homem no seu estado mais avançado, o mesmo homem que se faz explodir com engenhos artesanais e mata os outros homens que o mandaram eleger como inimigos, o mesmo homem que se afinca a fazer retroceder os tempos para escuridões primitivas de ignorância e negação. 
O mais e o menos é tudo o que somos.

Licínia Quitério

3.7.16

SILLY SEASON



Aí está a silly season, com as suas quenturas a pedirem bebidas frescas, as esplanadas de Domingo cheias de gente morena, suada, de crianças rabugentas a quem foi subtraída a sesta, de cães à trela ameaçando arrastar cadeira e dono. Para o fim da tarde chegam os da praia, areia a transbordar das havaianas, a água estava boa, um bocado fria, no Algarve é que é bom, talvez em Agosto, um fim de semana, só, e já é bem bom, há quem nem isso possa fazer. Há os que se sentam para uma cerveja e uns tremoços, caracóis não há aqui, puxam dos telemóveis, olha, sabes quantos likes já tenho, quarenta, e ontem ainda tive mais. Uma mão para o tremoço a outra para tactear o écran, agilidade, agilidade, são da era do polegar, do toque subtil, dos olhos pregados na imagem, nas imagens, muitas, nos textos, curtos, muito curtos, pouco mais do que sinalefas, ícones,  emojis, emoticons, palavras que não sei escrever, os novos hieróglifos, os novos tempos, o novo Verão no hemisfério norte.

 Licínia Quitério

O VIZINHO INVISÍVEL


APRESENTAÇÃO DO LIVRO DE FRANCISCO JOSÉ FARALDO "O VIZINHO INVISÍVEL"

Vivemos no mesmo bairro há muito e mal nos conhecemos. Não sabemos se estas pessoas partilham os nossos hábitos, se comem mais carne ou mais peixe do que nós, se preferem o fado ou o rock, se lêem ficção ou poesia ou nem sequer lêem, se prezam os antepassados ou preferem ignorá-los, se são de alguma igreja ou de nenhuma, se são gente de partir ou de ficar. Não conhecemos e não procuramos conhecer. Preferimos a estranheza à convivência.
O que se diz do bairro, pode dizer-se da rua ou, se bem atentarmos, do prédio-formigueiro com cada um em sua toca, de encontros fortuitos em espaços comuns.
Se assim é e se de tal só damos conta e nos admiramos quando paramos para pensar nos nossos pequenos mundos, ali à nossa mão, diante do nosso olhar, que dizer de dois países que em grande medida se ignoram, apesar de partilharem a mesma península, de ibérica chamada, toda virada ao mar a não ser numa faixa de altos relevos que mal a deixam espreitar, ou ser espreitada, pelos outros povos além Pirinéus, aquém Urais de que se diz Europa.
De um passado de invasões, lutas, conquistas, expulsões, reconquistas, pelos séculos se foram criando na península condados, reinos, regiões, se foram traçando fonteiras, transpondo fronteiras, fechando fronteiras. Entre batalhas, pelejas, guerras, todas infames, todas sangrentas, nesta península se firmaram e perduraram até aos nossos dias dois países que hoje se chamam Espanha e Portugal, o mais pequeno ligado ao maior, a norte e a leste, ambos usufruindo a mesma Natureza, os mesmos rios, montanhas, planuras, securas, verduras, indiferentes às motivações, às linguagens dos homens.
Quiseram os ventos, os dos “maus casamentos” e os da história da insensatez e ambição dos homens que portugueses e espanhóis tenham vivido costas com costas, remoendo o passado, ignorando o presente, nesta jangada de pedra que Saramago, por artes mágicas da vara de negrilho com que Joana Carda riscou o chão, fez cortar o istmo e vogar mar adentro, ou mar afora, e dizer adeus ao velho continente, numa alegoria, atrevo-me a presumir, da inevitável unidade do destino de seus povos, numa deriva atlântica. Mais do que de costas voltadas, vivemos na ignorância uns dos outros, na ausência de curiosidade, na repetição de velhas, estafadas anedotas, falando nós portugueses de “nuestros hermanos” sem qualquer convicção de irmandade e olhando-nos, os espanhóis, como um povo parecido com eles, mas cuja fala têm dificuldade em entender, gente simpática mas um bocado tristonha e pouco mais. Nós orgulhamo-nos de Gama e eles de Colón, nós de Camões e eles de Cervantes, como se não tivessem nascido, escrito e aventurado num tempo comum, numa gesta comum de um tempo em que ambos demos cartas ao mundo, de arrojo e sabedoria, muitas vezes também de crueldade e despotismo.
É sobre nós, os vizinhos ibéricos, que Francisco Faraldo, um espanhol que conhece e ama Portugal como uma das suas casas, tanto que escolheu morar também nesta, decidiu em boa hora escrever o livro El vecino invisible, que hoje aqui se apresenta, vertido para português, agora com o nome de O vizinho invisível.
É esse vizinho invisível, o Portugal ignorado pelos espanhóis, que Faraldo faz descobrir, com grande perspicácia, com rigor histórico, e sobretudo com uma deliciosa ironia, que nos leva ao sorriso e ao riso, quando nos mostra, a nós portugueses, as nossas idiossincrasias que só um olhar exterior e penetrante consegue avistar e descrever. Mais do que um livro para os espanhóis melhor nos entenderem e conhecerem, é este um livro para nós portugueses nos revermos, nos redescobrimos. É neste sentido um livro para todos os que na jangada vivem e se interessam pelas razões do que somos, pelas nossas diferenças e afinidades, como povos unidos pelo determinismo da geografia.
Depois de ter lido El Vecino Invisible, fiquei com grande vontade que o livro viesse a ser editado em Portugal, tendo em conta a abordagem inteligente e descomprometida dos nossos percursos e costumes feita por alguém que tão bem conhece os dois países ibéricos. Em conversas com o autor, várias vezes lhe fiz sentir este meu desejo de que o seu livro se tornasse acessível ao público português. Estava eu muito longe de supor que Francisco Faraldo, o meu amigo Paco, perante a minha impertinente questão, me lançasse, num tom falsamente distraído, “se fores tu a traduzir…”. Da minha resposta ao repto sabem os leitores deste livro, que a Poética aceitou em boa hora editar e que hoje aqui se apresenta. Traduzir esta obra foi de facto um grande desafio a que me atrevi, tentando não trair a confiança que o autor em mim depositou e a quem agradeço de todo o coração.
Porque a Poesia nunca me larga e porque o autor também é Poeta, termino esta apresentação com um poema de Ruy Belo de que gosto muito e que nos remete para a questão da vizinhança, no seu sentido lato:

  “E tudo era possível”
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

Licínia Quitério

21 de Maio de 2016

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