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29.10.14

O PINHEIRO


A Casa Grande e as Pequenas Casas. As grandes histórias e as pequenas histórias. Aquele pinheiro grande foi uma pequena árvore de Natal que alguém resolveu plantar depois da festa acabada. Isto foi há muitos anos, tantos que muitas pessoas das casas pequenas já partiram e chegará o dia em que ninguém saberá da história do pinheiro que é hoje a maior árvore da rua. 

Licínia Quitério

28.10.14

MORTES ANUNCIADAS



Eles matam-nas e matam também os filhos.
Elas calaram-se, esperaram que eles mudassem, não fugiram porque têm os filhos e não sabiam para onde ir.
Elas fugiram e pediram abrigo e continuaram com medo deles.
Elas voltaram um dia para eles que prometeram não tornar a bater-lhes, mas bateram, cada vez com mais força.
Elas não suportaram, pediram o divórcio, eles sairam de casa, elas julgaram-se a salvo, mas eles apanharam-nas na rua e mataram-nas e também mataram os filhos que tentaram protegê-las.
Elas têm vergonha que a família saiba, que os vizinhos saibam, elas gostam deles, elas sentem-se culpadas porque falaram com outro homem, elas sentem-se culpadas porque pensaram em fugir.
Eles têm ciúmes, eles não aceitam perder o processo de divórcio, eles vivem com outras mulheres, mas querem matar aquela.
Os políticos sabem, os vizinhos sabem, as famílias sabem, na polícia sabem, no hospital sabem.
Todos esperam a tragédia, todos sabem que um dia eles as matarão. Todos esperam as mortes anunciadas.

Licínia Quitério

26.10.14

O RELÓGIO


É uma hora de mais, é uma hora de menos, é o sol que dura muito, é o sol que dura pouco, é o dia que nos sobra, é o dia que nos falta, à roda à roda é que vamos, acima do que não queremos, abaixo do que sonhamos, muitas horas, tantas horas, na roda à roda da vida, no corre corre dos dias, no relógio que parou, no relógio que quebrou, no tempo que nos faltou, no tempo que nos sobrou, no amor que se perdeu, no amor que se encontrou, da criança que cresceu, do homem que envelheceu, na roda a rodar a vida, no minuto da chegada, no minuto da partida.

Licínia Quitério

25.10.14

REVELAÇÕES




Projectando capa para O Livro dos Cansaços, vencendo dificuldades de quem muito pouco ainda sabe de laboratórios fotográficos digitais. 
Vai longe o tempo da câmara escura no que deveria ser a despensa, do pano preto no vidro da bandeira da porta, da lâmpada vermelha, do amplificador que rangia na subida da haste, da novidade que foi o pequeno tanque de revelação, das foto-montagens de corte e recorte, do papel tão caro ao abrigo de humidades, das provas de contacto, do estendal das películas com corda e molas de roupa, da alegria de obtermos um alto contraste quase quase artístico. Por amor à arte, como tudo o que se fazia naquela casa, pelo prazer genuíno de conseguir fazer, de perceber o como e o porquê das coisas, tantas vezes com recurso a livros, a manuais, que ajudavam aos saberes, às descobertas, às invenções. Aprendia-se que na vida tudo está feito e tudo está ainda por fazer. A casa era um universo, onde as maiores e mais saborosas viagens aconteciam. 
Isto a propósito da capa que já está pensada, feita, e que talvez se mude que eu continuo a ser muito de mudança, até ao limite que fica sempre distante, tão distante, da perfeição. E ainda bem que assim é.

Licínia Quitério

21.10.14

SÃO ROSAS



São rosas, senhor, meu bem
Rosas verde, rosas carne
Flores de pão, flores de chão
Serão rosas se eu quiser
Serão pão, serão poema
Que diga o que eu não souber
Da vida que me couber
São amor, senhor, meu bem

Licínia Quitério

18.10.14

CONHEÇO-A

     

       Conheço-a desde sempre, desde que eu era criança e ela uma jovem mulher, de gargalhadas frequentes e sonoras, loira, pobre, muito pobre, no tempo de muitos pobres, de vários e pesados trabalhos, de alguns filhos, minha vizinha, que o beco dela abria na minha rua. Décadas me levaram para outra terra e ela para outro beco a dar para outra rua.
Voltei e encontrei-a, ficámos ambas contentes, rimos ambas, ela com a sua sonora gargalhada, a tratar-me por menina, eu já não loirita, ela ainda, na sua matriz celta, persistente. Gostei de a ver, já sem a moda da penúria que dantes lhe coubera. Estava bem, os filhos criados, na sua casinha modesta, com o conforto que nunca tivera. Passei a vê-la quase diariamente, na sua bica e bolinho, ambas no mesmo café, como está a menina, como está a senhora C. Vamos envelhecendo as duas, ela mais adiantada do que eu, sabe-se lá quem chegará primeiro.
Ultimamente não a encontro de boa saúde. A senhora C tornou-se uma velha em banco de jardim, perdido o garbo que nem a pobreza lhe tirou, os cabelos loiros desalinhados, o olhar perdido sabe-se lá em que becos. Respondeu-me ontem apenas com um aceno, sem menina, sem a gargalhada que sempre lhe nascia na garganta.

Licínia Quitério 

8.10.14

LEITURA




Nunca fui o que se chama leitora compulsiva. Sei ler desde os quatro anos e comecei a ser leitora por volta dos oito. Livros passaram a ser as minhas prendas de anos que eu devorava, e relia, relia, até as historias ficarem dentro de mim para sempre. Não eram muitos os livros, que o orçamento caseiro era bem fraco. Na primeira adolescência, coincidente com primeiros anos do liceu, li tudo o que me aprecia à mão, desde o Cavaleiro Andante, aos livrinhos de cowboys que os meus amigos rapazes me emprestavam.
Quando comecei a ter autorização para ir à biblioteca municipal, à noite, pude devorar desde a Condessa de Ségur, aos Três Mosqueteiros, depois à Pearl Buck e, a todos os que na época eram considerados leitura para meninas e que não eram nem de longe os meus favoritos. Por obrigação escolar, com prazer, conheci os clássicos, Júlio Dinis, Alexandre Herculano (todo), Eça (todo), Camilo (pouco). Descobri então Victor Hugo e, em tempo roubado a estudos obrigatórios, apaixonei-me por Paris, pela Esmeralda, pelo Jean Valjean.
Da Biblioteca Municipal, passei para a carrinha da Gulbenkian que me deu tudo, os neorrealistas, e Pratolini e Sartre, e Camus e Malaparte, e sempre um livro de poesia. E havia uma prateleira fechada com livros que o funcionário me dava, disfarçadamente, e dizia baixinho "vai gostar".
Curado Ribeiro tinha um programa de rádio, "Leituras" que passou a ser o meu guia espiritual na busca do que julgava o melhor. Cedo passei a trabalhadora estudante, e as livrarias de Lisboa passaram a ser lugar de culto, para ler e comprar, um ou dois livritos por mês, que para mais não dava o meu ganho em explicações.
Não sei bem quando comecei a ler menos, a deixar a meio livros que não me satisfaziam. Começou o meu poder de crítica, de discernir o bom, o menos bom, o execrável. Findou o tempo do endeusamento da leitura pela leitura. A Poesia, essa, foi a minha grande descoberta e tudo procurava, e me extasiava, e me irritava porque não compreendia, e só alguma filosofia dos compêndios me ajudava naquela linguagem que de humanos não seria, pelo menos de outro tipo de humanos que não faziam parte dos meus amigos, dos meus conhecidos.
Veio o tempo da angústia de tudo querer ler e não poder, de quão pouca era a minha vida para a torrente de saberes que os homens produziam, incessantemente, ao longo dos milénios, muito antes da escrita em livros, muito antes de toda a escrita.
Houve até um tempo de pouco ler, de muito fazer, de beber a vida em longos tragos, de saber do mel e do fel, de incitar os outros à leitura, de dar livros, num proselitismo de uma nova época, mais de canto que de leitura.
Hoje, que dei em escrever, leio, sim, leio, regularmente, sem pressas, sem a angústia do livro por ler, tantas vezes em diagonal, em complacência pelo que julgo menos bom. Há muitos autores que devia ter lido e ainda não li. Não li Proust, de Joyce não li o Ulisses. Imperdoável, devia ter vergonha de o dizer, mas não tenho. Sei que uma "madalena" me dará o tempo que perdi, que Lisboa me segreda a viagem nunca feita.

Tenho diante de mim um livro de poesia de Luís Quintais que ontem comprei, O Vidro. Vou demorar umas horas a lê-lo. Há sempre uma novidade que me espera de que saberei gostar, ou não. Sem remorsos, que a liberdade não tem culpas.

LICÍNIA QUITÉRIO

4.10.14

GATOS


A minha relação estreita com os gatos vem desde há muito, já que quando nasci havia um gato lá em casa e eu fui crescendo a brincar com ele.  Houve gatos nas minhas várias casas, assim como houve plantas vivas, em pequenos espaços abertos. Gatos que sempre viveram em liberdade, ausentando-se de casa por tempo indeterminado, cumprindo os seus rituais de namoro e acasalamento, correndo os riscos que a vida livre implica. Trato-os quando adoecem, mimo-os sem exageros, fico triste quando morrem. Não lhes ponho coleiras nem chips. São gatos-gatos, sem pedigree, sem raça que nome tenha. Nunca comprei nem vendi um gato. Dão-mos ou são eles que vêm ter comigo, pela janela, pela porta, escolhendo-me, percebendo, no seu instinto apurado, que comigo não lhes faltará comida e bom trato. À medida que envelheço, vou ficando mais tolerante com eles, permitindo-lhes estragos em sofás, em vasos, acalmando a fúria pela sua teimosia, a sua gulodice, cedendo mais facilmente ao fascínio dos seus olhos onde ainda dorme a fera que um dia foram. 
Faz hoje um ano que chegou a minha casa o Tigre, recuperado do abandono a que o votaram, com uns dois meses de vida. Se não fosse ele, não teria escrito este texto. Vários gatos têm habitado outros textos meus. São inspiradores, provocadores, indomáveis, independentes. 
Nunca fui dona de humanos e também não sou dona de gatos. Uns e outros chegam e partem e, cada um à sua maneira, deixam uma história, uma lembrança, uma indelével marca de Vida.

Licínia Quitério

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