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24.7.15

ESCADAS


Cansava-se, só de vê-las, só de pensá-las. Dizia “escadas” como quem soluça e explicava: “Se levassem ao céu...” 
Levavam ao salão bonito, de madeiras bonitas, cheiroso à gente bonita que ali dançara. Vermelhas, as escadas, como o seu sangue, como as faces das moças bonitas que outrora dançaram na sala bonita. 
Ficou cansada, pesada, dormente, só de pensá-las. Chegada ao cimo, chegada à sala, dobrou-se nas pernas, mirou-se num vidro e disse: “Como peixes de luz a nadar nos meus olhos.”.
“Está louca!”, exclamaram. 
Já não estava cansada. Fumou um cigarro e sorriu.

Licínia Quitério

21.7.15

LÁ ISSO...

Era uma vez um senhor doutor advogado, assim por extenso chamado, que nessa altura os causídicos eram poucos, respeitados, afamados, e supinamente necessários, já que a eles recorriam pobres e ricos, por mor de frequentes demandas. As razões dos pleitos, as mais vulgares, eram a má vizinhança de terras, a disputada serventia de águas, a questionada partilha de heranças, enfim, aquelas razões que, desde o princípio dos tempos, levaram os homens a guerrear e a mostrar a ferocidade maior de que são capazes, em nome dos “bens” a que julgam ter direito, sendo transitória a sua posse, mas disso não querendo saber. 
Era uma vez, como ia dizendo, um senhor doutor advogado, pequenino, de chapelinho um pouco à banda, ligeiro, mordaz, decidido, um fura-vidas. Tinha fama e proveito de ganhar muitas causas, de ser, na barra dos tribunais, fluente, loquaz, brilhante. Muito “prático”, o senhor doutor, como diziam, deslocava-se a casa dos pretensos clientes, a lugares escusos e de mau acesso, sempre esforçado na verificação dos teres e haveres do dito cujo, disparando, para abreviar razões, em veemente interrogação, a casinha é tua, esta terra é tua, e aquela também, o chapelinho à banda, a oscilar de gozo, se as respostas fossem afirmativas. Entregavam-se os desavindos em suas mãos e palavras, pagavam custas e mais custas, honorários e mais honorários, mas, se de bastante maquia não dispunham, o senhor doutor sossegava-os, não tens umas librazitas, não tens umas librazitas, não, então fazes-me uma hipoteca da casita que não vale nada, mas já agora juntas-lhe a terra de semeadura, que o meu trabalho é para ser pago, é para ser pago, repetia. Mas ó senhor doutor, gemia o espoliado, não há mas nem meio mas, se não fosse eu não ganhavas a causa, se não fosse eu não ganhavas a causa e ficavas sem o olival, lá isso, senhor doutor, muito lhe agradeço, mas a casa, senhor doutor. Já o outro, com a mão na porta, o olhar em volta, a avaliar o valor do espaço, e a dizer, amanhã passas lá pelo cartório, para a hipoteca.
Morreu há muito, o senhor doutor advogado, mas ainda hoje os herdeiros e os herdeiros dos herdeiros se digladiam pela posse de terras e prédios, que meia vila chegou a ser dele, o ilustre causídico, pessoa muito trabalhadora e inteligente. Lá isso…

Licínia Quitério

20.7.15

O CÓLEO



As plantas ornamentais também têm os seus tempos de serem moda. Em casa de amigos, deparei com um cóleo. Foi, muitos anos atrás, planta vulgar, nas suas variedades de cores fortes e contrastantes. Quando convenientemente cuidados, amigos que são de sol e água, cresciam e arredondavam, alegrando marquises, cozinhas, salas soalheiras. Durante muito tempo, deixei de vê-los, em casas ou nas floristas, e acabei por esquecê-los. Em seu lugar, vieram as orquídeas, aristocratas que perderam o título, e que hoje fazem parte do "mobiliário" vegetal de qualquer casa que se preze. Talvez a moda, no seu movimento circular, tenha agora recuperado os cóleos, de que poucos já saberão o nome. 
Fotografei-lhe um dos andares de cima, trouxe-o comigo, para me lembrar que hei-de procurar um para mim, para o ver crescer e arredondar, no seu festival de folhas garridas.


Licínia Quitério

15.7.15

O FUMO


Sempre triste, a rapariga. Sempre igual nos seus dias sempre iguais. Chega, em passos de uma única medida, a mesma de todos os dias, no seu caminho sempre o mesmo. Elegeu a mesa, a cadeira onde fica, à mesma hora, até à mesma hora de todos os dias. Não se pode afirmar que vista sempre as mesmas calças, a mesma blusa, mas nela tudo parece o mesmo dos dias anteriores, a fita com que prende o cabelo, a cor do cabelo, o penteado. Também iguais a mala a tiracolo, as sandálias com que marca a precisão dos passos lentos. Fuma, a rapariga, vagarosamente, enquanto bebe o café, o copo de água, enquanto folheia o jornal de sempre. Nesta monotonia, o que chama mais a atenção é o mistério no olhar da rapariga, parado, vazio, com que olha o mundo, ou não olha. Um olhar daqueles é igual a um desgosto persistente, a uma espera de nada, a um hiato no tempo da rapariga, a um buraco negro que ninguém sabe o que seja, nem sequer que exista. Tão triste, esta rapariga sempre igual, a sua figura ensaiando a transparência, até que um dia se esvaia com o fumo do cigarro.

Licínia Quitério
foto da net

9.7.15

AS RAPARIGAS



São bonitas estas raparigas de longos, largos vestidos, de ombros nus, mais morenas do que brancas, de cabelos compridos, soltos. Diria que são presenças de luz irradiante por detrás dos óculos escuros. Caminham devagar, arrastando um pouco os passos, com uma sensualidade antiga de fêmeas ainda jovens. Muitas trajam de negro, desprezando o calor com que o escuro lhes abusa os corpos. 
Enquanto caminham, ou se sentam, ou aguardam a sua vez numa fila, dedilham com obstinação os pequenos aparelhos com que ouvem, falam, escrevem, observam. As notícias que lhes chegam do outro lado do mundo, do outro lado do éter, do outro lado da vida, não parecem interessantes, surpreendentes, reconfortantes, ou assustadoras, tristes, desconfortantes. Digo isto porque, no seu afã de procurarem o outro lado, o outro no outro lado, os seus rostos permanecem lisos, sem marcas do tempo, sem vestígios de emoções. 
Enquanto caminham e se sentam e esperam, estas bonitas raparigas de longas vestes não sorriem, não choram, não se lhes adivinha traço de alegria, de espanto, de comiseração, de desgosto. Pensando melhor, nos seus rostos, aparentemente tranquilos, desenha-se por vezes uma leve decepção, os cantos da boca precocemente descaídos, um esboço de vinco entre os sobrolhos. 
São as novas mulheres, lendo e escrevendo cartas de amor e despedida, tal e qual suas avós, como elas dedilhando os dias, no desconhecimento dos anos, neste seu tempo ardente de procurar e encontrar.

Licínia Quitério

foto de Les Demoiselles d'Avignon, de Pablo Picasso - recolhida na net

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