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27.4.17

UM CASAL TRANQUILO

Chegaram e sentaram-se, frente a frente, nà mesa do café. Os filhos estão na escola, ele teve folga do serviço, ela, por agora, está desempregada. O dia está bonito, ela até estreou os óculos escuros que parecem Ray-Ban.
O telemóvel dele a tocar, ele a atender “Estou sim, diz coisas, pá”. Ela tira o seu aparelho do saco e, de dedo indicador em riste, dá início à tarefa de ver os e-mails, de correr o Facebook, um like aqui, outro ali, e outro, e outro, nos posts de muitos dos seiscentos e tal amigos. A conversa dele continua, continua. Terminada a distribuição dos likes, ela levanta-se e vai ao balcão pagar. Volta, ele levanta-se, o telemóvel no ouvido, saem os dois. Vejo-os afastarem-se, lado a lado, altos, elegantes. 
Não trocaram uma palavra, não se tocaram, não se olharam nos olhos. Um casal tranquilo, sem espaço para altercações, zangas. Quando for a partilha da guarda dos filhos, terão ocasião de discutir, acaloradamente, mesmo em frente do juiz, os filhos são dela, os filhos são dele, ai. Enfim, a bem ou a mal tudo se há-de resolver.
Surpresa foi a mensagem “Hoje dou cabo dela.” que ele gravou (antes daquilo) e pôs no You-Tube, com música de uma marcha militar em fundo, demasiado alto, mesmo assim a deixar perceber a voz rouca de raiva.
Nesse mesmo dia (antes daquilo), ela desabafou no FB, “Se não fossem os meus ricos filhos, eu sabia o que fazer.”. Teve muitos comentários e bateu o seu record pessoal de likes, mais de cem.

Os miúdos, nos “tempos livres”, desenhavam o pai e a mãe. Tinham ambos uma das mãos na orelha a segurar uma coisa em forma de borrão. O da mãe era cor-de-rosa, o do pai era azul. 

Licínia Quitério

23.4.17

O LIVRO



Hoje é o Dia do Livro. Do Livro de papel, com capa, com autor declarado, com páginas numeradas, com princípio e fim. O Livro como o conhecemos, nas nossas casas, nas nossas escolas, nas nossas mãos. Não é possível ignorá-lo. Mesmo que nunca tivéssemos lido um Livro ele teria chegado até nós. Ele contém o pensamento do autor posto em letras e palavras arrumadinhas. Palavras e letras que dele saem para o leitor, para os leitores, que as tomam, as adoptam, as transformam, as recriam, as amam ou detestam. E as passam a outros, pela voz, pela conversa, pelo acto, pela vida. Este Livro que hoje se celebra poderá deixar de se construir, sair de cena, ficar nos museus, nas caves, nas lembranças. Mas o outro, o Livro que existe em cada ser humano, não pára de ser escrito, de ser inventado, acrescentado, reconstruído, noutras vozes, noutros lugares reais ou virtuais, noutros tempos em que talvez já nem se chame Livro. O Livro há-de ser sempre um lugar onde o homem se pensa, se excede, se oferece, vive.

Licínia Quitério

21.4.17

DONA TELA

Falar da Dona Tela é um exercício arriscado, um solilóquio, uma expiação. Encontrei um pequeno texto que escrevi há um bom par de anos, em resposta a alguém que perguntou quem ela era, e que aqui transcrevo.
"A Dona Tela não sou eu, se bem que por vezes gostasse de ser. Penso que a conheço, ingénua mas não burra, desbocada que baste, deslumbrada por futilidades, de coração de manteiga, presa não tão fácil como parece, mas com perigosas fraquezas, quarentona, sedutora ainda, suburbana e pelintra, muito pelintra. Passo muito tempo sem saber dela. Depois aparece, sempre atenta ao mundo, com a sua linguagem muito viva e heterodoxa."
Ainda hoje ela se me apresenta, agora com as unhas pintadas de azul, as leggings a comprimir algumas molezas, um ombro bem destapado, a jeitosa lá do bairro. Continua a ver telenovelas, sonha com um highphone de último modelo e tem a foto do CR7 ao lado da do dito-cujo, o tal que vende aspiradores e lhe comprou um pedacinho da alma. Só um pedacinho, que a Dona Tela é uma mulher prá-frentex que chora baixinho e ri muito alto, escandalosamente. Confessou-me que simpatiza com a geringonça, mas não me diz qual o elemento do trio ela prefere.

Se eu sou a Dona Tela? Toda a gente sabe que não.

Licínia Quitério

5.4.17

PRIMAVERA



Sabemos que a Primavera é menina de caprichos, instável, imprevisível, de humores vários, temperaturas várias, de alto a baixo da escala, de roupas frescas e de abafos, de neve na serra, de chuva de manhã, de sol à tarde, de arco-íris e de nevoeiros. Também de alergias e gripes tardias, de neuras e depressões, de súbitas paixões, de súbitas separações, de desejos inconsequentes. Dou por mim a perguntar como será viver num país de outros meridianos, de outros paralelos, sem Primavera, sem Outono, sem estas estações de classe média, responsáveis, assim dizemos, por toda a nossa inquietude, pelos espirros e pelos desamores, pela vida mediana e mesmo assim esperançosa que nos faz acreditar em florações perenes, como se as árvores as pudessem suportar.

Licínia Quitério

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