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30.5.14

A PALIDEZ


Estava tão pálido que as manchas da idade sobressaíam no rosto como um arquipélago de ilhas desertas.  As mãos afadigavam-se a amarrotar um boné que há pouco o protegera da chuva miúda. A televisão transmitia, sem som, um programa vulgarmente designado de entretenimento. Sentou-se mesmo por baixo dela, desinteressado, alheado. A seu lado, um suporte de revistas antigas com retratos de figuras conhecidas  do espectáculo. Nem as olhou. Possivelmente nem reparou nas únicas duas outras pessoas na sala de espera da clínica. A mulher obesa, de ligaduras na perna inchada, que suspirava abundantemente, e o jovem absorto a passar as polpas dos indicadores no écran do seu telemóvel inteligente. O homem era mais pálido por causa da luz artificial da sala, instalada há décadas na cave húmida e escura da clínica privada. Reparando melhor, também a mulher gorda e o rapaz do telemóvel se apresentavam descorados, baços, e a napa que revestia os assentos era de um rosa pálido, desbotado. Nos painéis  de madeira que faziam de paredes, alguns cartazes a anunciarem especialidades médicas, a avisarem que os exames devem ser levantados dentro de xis meses, a pedirem silêncio no corredor muito estreito onde se cruzam pacientes, médicos, funcionários administrativos, dizendo “desculpe”, “com licença”, uns numa pressa, outros penosamente ajudados por  bengalas mecânicas ou, com alguma sorte, humanas. Dos vários gabinetes saíam vozes, quase sempre femininas, fazendo a chamada do paciente seguinte. O homem pálido foi o último a ser chamado para um gabinete por detrás de uma das paredes de madeira e que tinha uma tosca tabuleta que dizia RADIOLOGIA.  Quando desapareceu e a porta se fechou, a sala ficou vazia, pálida, húmida, triste, sem ao menos um vasinho de flores que, pensando bem, depressa murchariam na luz fraca da cave.  Há lugares assim, neste mundo de vivos, longe, muito longe da provável alegria.

Licínia Quitério



13.5.14

N S F



No treze de Maio, lembro-me sempre dum outro treze, do fim dos anos quarenta, em que tivemos de colocar nas janelas umas luminárias com as iniciais N.S.F., abrir as janelas e acender as luzes da casa. Sabido que era não sermos uma família religiosa, foi meu Pai avisado de que correria perigos se não colaborasse colocando a iluminação, distribuída de casa em casa, à passagem da procissão. Eu fiquei à janela, encantada com as luzes das velas e os cânticos do padre ou seus acólitos. No chamado "carro de som" alguém gritava: "Nossa Senhora de Fátima livrai-nos do comunismo. Nossa Senhora de Fátima rogai por nós. Afastem-se do carro". E a multidão, maioritariamente mulheres, de véus ou lenços na cabeça, conforme a classe social, rezava em coro. Minha mãe punha um lenço e ficava à janela também. Tinha muito medo. Meu pai deitava-se ainda mais cedo. Eu gostava daquela festa e não entendia lá muito bem a zanga do meu Pai. Não tardei muito a perceber. Era a guerra fria que passava na rua e nós tínhamos que ser dos bons. Dos maus a Senhora de Fátima nos livraria se rezássemos muito. Nessa altura eu já era bastante desobediente e assim continuei até hoje.

Licínia Quitério

foto da net

11.5.14

AS AUSTRÍACAS


Eram conhecidas pelas Senhoras  Nunes e nenhuma delas se casou. Dedicavam-se a ensinar crianças pobres a ler, a escrever, a contar, a rezar. Não eram ricas, mas herdeiras de um ar distinto e senhorial que as fazia respeitadas. Generosas, cultas, católicas convictas, praticantes assíduas, mas sem nunca serem referidas como beatas, que delas se distinguiam por alguma altivez e finura de maneiras. Veio a guerra que tingiu de sangue a Europa. Salazar mantinha uma neutralidade complacente com o nazi-fascismo, naquela muito sua manha de estar bem com Deus e com o Diabo. Em plena guerra, anos quarenta, apareceram em casa das Senhoras Nunes duas meninas estrangeiras que, soube-se, se tinham disposto a acolher, fugidas que vinham do seu país, a Áustria, esmagada por Hitler. Eram as refugiadas, assim chamadas nas terras de acolhimento, sem que alguma vez se pronunciasse a palavra judias.  Vi-as aos domingos, a caminho da missa, ou em fins de tarde de novenas muito praticadas na altura. Eram bonitas, mais loiras e mais brancas do que eu, bem mais corpulentas, tendo aproximadamente a mesma idade que eu. Davam as mãos às Senhoras Nunes, caminhavam muito sossegadas e quase não falavam. Eram para mim motivo de curiosidade, que delas apenas sabia que tinham nomes estranhos e um dia voltariam para o seu país, o que aconteceu anos mais tarde. Uma delas voltou em visita às Senhoras Nunes, já mulher, grande, loira e bonita. Eu não soube mais da saga das meninas austríacas que passavam na minha rua aos domingos ou de semana em fins de tarde. Sei hoje que enquanto estiveram ao abrigo das bondosas senhoras praticaram a religião que não seria a delas, certamente. Que contarão as meninas, se ainda viverem, tão ou mais velhas do que eu, daqueles anos em que rezaram o terço, numa língua que não era a delas, num país que não era o delas, sem as famílias que por certo não voltaram a ver? Para mim foram a notícia mais próxima de uma guerra que eu não conhecia.

Licínia Quitério

10.5.14

CARTAGENA DAS ÍNDIAS


Ao ler no Público, no seu suplemento FUGAS, um artigo de Andreia Marques Pereira, sobre Cartagena das Índias, relembrei o lugar onde, por graça da vida, me encontrei vagueando durante um dia de não muitas horas. De tudo o que vi e ouvi, senti Gabriel García Marquez e os seus personagens, especialmente os de Amor em Tempo de Cólera. Procurei avidamente o balcão de Fermina Daza e o trote do cavalo de Florentino Ariza. Apesar da avalancha de turistas e vendedores ambulantes, não me foi difícil perceber a paixão de Gabo por aquele lugar, a cidade violenta e vitoriosa como lhe chamou. Das arcadas do antigo mercado de escravos ao palácio-museu da Inquisição, às cúpulas renascentistas, da mansidão do grande relógio à pressa do guia, foi quase uma tontura que me permitiu pensar no escritor que nos ofereceu o deslumbramento do realismo mágico, com as cores vivas dos muros, a quentura das brisas, a lentidão suada das gentes assoladas por piratas de tempos vários. Voltei lá hoje, lendo. Não preciso de voltar. Não devo. Seria já outra coisa.

Licínia Quitério

4.5.14

CHOCOLATE


Era uma loja pequena, envolta naquele cheiro quente e doce do chocolate. Em toda a loja havia chocolates e os chocolates eram de todos os feitios, cores, texturas, recheios. Para todas as ocasiões, como se notava pelos anjinhos prontos para a comunhão solene. Sentei-me na cadeira rococó,  enquanto as amigas escolhiam por entre aquela girândola de bombons, correndo o balcão em L de uma ponta à outra, numa indecisão de quem escolhe quando a oferta é exorbitante. Enquanto olhava em redor, catando os movimentos, eu pensava que tudo naquela casa era feito de chocolate. As paredes, o tecto, o chão, os móveis, tudo como num conto germânico de infância.  Mas o mais espantoso era a senhora de idade, como se diz de quem passou alguns "entas", magrinha, pequena, as costas já curvadas de tanto se dobrar sobre o balcão, de pinça e caixinha, a escolher, este, este não, aquele, mais um, com rapidez, de passinhos miúdos e deslizantes, a cabeleira impecavelmente penteada, os brincos, o colar com um pendantif, os óculos de aro dourado. Falava a senhora dos chocolates, enquanto escolhia, mais um destes, mais uma caixinha, das pequenas. Falava do seu desejo de viajar, de sair dali, de deixar o cheiro quente do chocolate e partir, por uns dias que fosse, para um país de sol e mar. Não podia. O marido não gostava de viajar, o filho também não, as amigas abastadas faziam viagens caras demais para ela, as amigas menos afortunadas não tinham dinheiro que chegasse. Deu um suspiro, endireitou quanto pôde o arco das costas e disse: É tão difícil, uma mulher sozinha.
Levantei-me, as amigas já tinham as suas caixinhas de delícias, olhei mais de perto para a senhora de olhinho triste.  Pensei: se ela fosse também de chocolate não havia de querer trocar a loja por uns dias de sol e companhia. Isto de ser de carne e osso, e mulher e sozinha tem que se lhe diga. Não é doce, não, pensa a senhora da loja dos chocolates.
Licínia Quitério

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