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6.8.17

MISTER BROWNE

Por razões profissionais, conheci em tempos um americano típico,  Mister Browne, húngaro de nascimento, a viver em Los Angeles, um homenzarrão dos seus sessenta anos, de grandes bigodes grisalhos, que me aparecia de lencinho colorido ao pescoço e não raro com um chapelão de cow-boy. Tratava-me por Maria, eu sempre lhe dizia que não era e ele, imperturbável, continuava, Yes, Maria, tal como tratava todas as jovens portuguesas que, como eu, eram empregadas e tinham patrão. Visitava a empresa duas vezes por ano, para inspeccionar o fabrico das cadeiras que ali se fabricavam, em exclusividade para ele, segundo os seus próprios desenhos e exigências. Ao longo dos anos, fui-me habituando às visitas de trabalho de Mister Browne, que, nos intervalos das infindáveis reuniões, ficava a conversar comigo da sua vida familiar, nomeadamente de um dos filhos que andava quase sempre bêbado e que de trabalhar não gostava, o que trazia Mister Browne apreensivo com o fígado e o futuro do descendente. Invariavelmente abria a carteira e mostrava-me as fotos mais recentes da família, da casa, e ultimamente da piscina que dava um trabalhão a manter limpa, segundo métodos que me explicava. 
Numa dessas conversatas, preparei atalhos para lhe perguntar o que pensava de Hiroshima. Mister Brown retorceu as pontas do bigode, disse ahm, ahm, como dizem sempre os americanos a iniciar as frases, e, perante o meu olhar a filar a resposta, pausadamente, muito pausadamente, ahm, ahm, Maria, Truman fez o que tinha de ser feito, para evitar muito mais mortes. Assim, sem um lamento. Percebeu que eu não estava confortável. Disse, yes Maria, awful, sure Maria, war is awful. 
Passaram 72 anos sobre um dos maiores crimes da humanidade e todos os anos por esta altura recordo Mister Browne, a água límpida da sua piscina, o seu pragmatismo a falar de Hiroshima. 

Licínia Quitério

foto da net

1.8.17

ARQUITECTURA


Gosto quando a arquitectura nos diz de encontros e desencontros, de gostos, funções, testemunhos de muitas e variadas ordens de sucessivos mandantes, e nos deixa perplexos na procura de um fio que nos conduza e nos conte histórias de destruições, de cataclismos, de faustos e misérias e básicas utilidades. A segurar a história estão as pedras, as dos tempos muito antigos, as de hoje, e a juntá-las a cal, a cobri-las a tinta. Da gruta à pirâmide quanto caminho andado, quanto deserto nascido. Do palácio à choupana, quantos amores vividos, quanta fome, quanta sede de mar.  De tudo isto me alimento quando inauguro um sítio escuso, algures, na torreira da tarde, onde ninguém se demora, que ninguém guarda na memória.  

Licínia Quitério

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