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22.11.15

BALADA DA TERRA



Poisar os dedos na terra
E o coração a segui-los
Porque ela só se revela
A quem a sente, a adivinha,
A toca como quem ama
Com a mansidão das tardes
Quando recolhem as aves.

Dá um nó no nosso peito
Que à noite se desenlaça
E deixa um leve tremor
A fazer-nos balançar
Na corda do desamparo.

É a terra que nos sabe
Nos acolhe ou nos rejeita
Nos oferece o verde, o grão
Ou o espinho e a secura
Conforme o pão repartimos
Ou esquecemos a ternura.

Licínia Quitério

21.11.15

A FESTA


A vida mudou muito, aqui a ocidente, mesmo para nós, os lusos, no país a descair para o mar, de costas para o outro que tão mal conhecemos. Agora, num encontro de amigos, numa celebração de aniversário, há os que vêm de outras terras para onde foram trabalhar, há os que já os visitaram, há os que falam de viagens, de aeroportos, de cidades, do que dantes se dizia, "lá fora", e de que agora se fala com alguma intimidade, porque mesmo que nunca lá tenhamos ido há a sensação de que todo o lugar nos é possível, todo o preparativo de viagem se resume a avaliar o peso duma mala. É assim, mas talvez essa ligação com o mundo faça um interregno, se suspenda num armário de velhas roupagens, de velhos medos, de novas interrogações. Hoje mesmo, a conversa vai-se pontuando de notícias de última hora, de mortandades de última hora, das bombas de ontem, do susto que vai povoando o amanhã. Por detrás de nós, há um relógio que decidiu inverter o sentido dos ponteiros, que nos lembra que tudo pode já ter sido assim, que talvez volte a ser, e que de novo digamos "lá fora" onde hoje dizemos "ali", e o mundo nunca venha a ser o que sonhámos, sem ninguém que  fosse "de fora", porque todos caberiam "cá dentro", era só aumentar o tamanho da mesa e o número dos pratos.
Depois da festa de hoje, foi nisto que pensei.

Licínia Quitério​

17.11.15

O AMÁVEL



No andar mais baixo do prédio, a janela aberta, o começo duma tarde quente, um braço a descansar no parapeito, aconchegado por pequena almofada, à medida daquele braço sem vida, a mão fechada, o polegar escondido. A procurar a janela que fica recuada e mais baixa do que o passeio onde caminho, rodo um pouco a cabeça e dou com o rosto daquele braço inerte, um rosto de olhos parados, muito abertos, um esgar no lugar da boca, o tufo de cabelos ondulados a descair sobre as têmporas. Estremeço quando percebo que conheci aquele resto de homem noutro homem inteiro, enérgico, de fala grossa, a dizer-me olá, a tratar-me pelo pequeno nome de infância. Porventura pensara que já tivesse morrido, há muito deixara de o ver, a gente esquece-se dos vivos se não continuam a passar por nós, ao menos de longe em longe, a lembrar, ainda aqui estou, tu também, se calhar sempre estaremos, quem sabe a morte não existe mesmo.

Abrando o passo e não desvio o olhar da janela, do braço do homem, do olhar vazio do homem que era o mesmo, afinal era ele, ainda quase vivo, podia ter morrido que eu nem daria por isso, mas vê-lo assim em esboço, em sombra, em arremedo, dá-me uma tristeza exagerada, sei lá eu porque entristeço assim, às vezes, era só meu conhecido, que raio, a idade torna-nos piegas. Por detrás dele, o vulto sombreado da mulher, a mulher dele que também conheci, não sei como se chama, o nome dele sei, é um nome bonito, chama-se Amável. Ela lá está, tem na mão um prato, deve ser para lhe dar de comer, uma mulher que dá de comer ao seu homem, ao que resta do seu homem, agora só Amável de nome, que a doença decerto o tornou irascível, a balbuciar palavrões que nunca usava dantes, a ameaçar bater-lhe com o braço que não morreu ainda. Há horas, muitas horas, em que ela chora, choraminga, tem tanta pena dele, tem tanta pena dela. Não pode ir-se abaixo, é seu ofício tratá-lo, alimentá-lo, vigiá-lo, suportar-lhe os acessos de fúria, aguentar, aguentar, afastar frases terríveis que se lhe atravessam na cabeça, em momentos mais negros, morre, porque não morres, eu não aguento mais. Já descobriu como apagar as palavras que nunca dirá, por mais que elas se apresentem. Vai ao café mais próximo, bebe um café ao balcão, responde à empregada, está melhorzinho, graças a Deus. Regressa a casa, devagar, a prolongar o tempo, a alongar o espaço, o que havia de lhes acontecer. 

Licínia Quitério

15.11.15

A VIAGEM DA CAIXINHA - leitura

13.11.15

NOVO LIVRO


8.11.15

RIO



Ah rio da minha vida, 
dá-me água, dá-me luz,
dá-me um fado se quiseres,
mas não pares, não emudeças,
não escureças,
que as pedras desta cidade,
o céu sobre elas deitado,
é por ti que se enamoram
e os seus nomes inscrevem
nos livros da marinhagem,
da salsujem, da ferrugem
dos barcos sempre encalhados
nos teus baixios de saudade.

Ah rio do meu caminho,
traz-me novas, traz-me naves,
traz-me verde se puderes,
não te percas, não te vendas,
não te prendas,
que os homens desta cidade,
o céu sobre eles deitado,
é por ti que filhos fazem
nas tardes da beira-rio,
no voltear da folhagem,
numa margem, noutra margem,
no lado de cá da sorte,
nos dois braços da viagem.

Licínia Quitério

4.11.15

CIÚMES


“Quem me dera no tempo de saltar os muros para ir roubar ameixas, ainda verdes, de fugir dos cães, dos cães que guardavam as árvores, os quintais, que ladravam e às vezes mordiam a quem trazia, a quem levava, a quem estava e não devia estar ali, no seu entender de cães.”
Isto dizia ele, uma das mãos na bengala, a outra a passar o lenço pela água dos olhos, azulados agora, e tão incompetentes que mal guardavam a memória do azul, daquele azul que dantes era o céu de todo o ano, ainda que chovesse e os adultos dissessem que era Inverno e o dia estava triste.
“Saltavas muros e rasgavas os calções e esfolavas os joelhos e depois mentias à tua mãe, coitada, que tinhas caído, que te tinham empurrado. Era assim ou não era? Eras fresco, sempre foste fresco, sem juízo nenhum, sempre a saltar de um lado para o outro, de quintal em quintal, de casa em casa, de mulher em mulher.”
Isto dizia ela, ajeitando o cabelo mal pintado de castanho, a raiz branca a crescer, a malinha de mão entre os dois, no banco de pedra de todas as manhãs, com uma bela vista para o jardim público.
Ele não a ouvia e repetia, na rouquidão da voz:
“Quem me dera, quem me dera naquele tempo…”
Ela olhava-o de través, com uma ternura azeda.
“Bem sei no que estás a pensar. Não é nas ameixas, não, sempre foste um valdevinos, mas agora acabou-se. É a vida, homem. Envelhecemos. O que passou, passou. Agora já não há nada a fazer.”
As mãos dele na bengala, uma sobre a outra, tremiam, de um tremor doente, que não era medo, que não era frio, que não era desejo. Deixou correr a água dos olhos. Queria lá saber que ela visse. Quem lhe dera poder ainda comer ameixas verdes como aquelas, deitar-se com mulheres frescas como aquelas.
Ela poisou uma mão sobre as dele, a parar-lhe a tremura, a adoçar a ternura.
“Deixa lá, meu velho desavergonhado. Quem me dera a mim ter para recordar frutos verdes, rapazes novos.”
Aí, ele afastou-lhe a mão das dele e endireitou as costas quanto pôde.
“Querem ver que a idade te deu para a asneira? Tem mas é juízo, mulher.”
Ela percebeu-lhe o sobrolho carregado e virou a cara para o outro lado, a esconder um sorriso.

“Vá lá, ao menos hoje sentiu ciúmes.”

Licínia Quitério

"CALCITRIN"


Pobre senhora desacertada, velha, suscitando sorrisos complacentes, com as suas vestimentas exóticas, os seus risos sincopados e estridentes. Não é tão evidente o seu desacerto porque os dias são de gente fora de catálogo, de tantos e tão variados modos e falas, procurando-se, lançando linhas ao lago vazio de peixes, talvez escondidos no fundo, lá bem no fundo, que oiçam, a seu modo, os pedidos de ajuda, de companhia, de esperança. 
Pobre senhora, a atirar frases aos que lhe falam e aos outros que não dão por ela, a ficar magrita, daquela magreza a assinalar os ossos. 
Senhora que parece perdida de um mundo que terá sido o seu, alvo de  sorrisos e também de carinhos inesperados, de atenções à sua saúde, às suas rotinas implacáveis. "Calcitrin", só toma um por dia, avó, diz a neta que o não é, obediente aos mercados, atentos sempre ao bem estar dos ossos das senhoras, por muito desacertados que elas tenham os relógios, que elas tenham a vida. 

Licínia Quitério

A louca de Chaillot - foto da net

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