Site Meter

4.11.15

CIÚMES


“Quem me dera no tempo de saltar os muros para ir roubar ameixas, ainda verdes, de fugir dos cães, dos cães que guardavam as árvores, os quintais, que ladravam e às vezes mordiam a quem trazia, a quem levava, a quem estava e não devia estar ali, no seu entender de cães.”
Isto dizia ele, uma das mãos na bengala, a outra a passar o lenço pela água dos olhos, azulados agora, e tão incompetentes que mal guardavam a memória do azul, daquele azul que dantes era o céu de todo o ano, ainda que chovesse e os adultos dissessem que era Inverno e o dia estava triste.
“Saltavas muros e rasgavas os calções e esfolavas os joelhos e depois mentias à tua mãe, coitada, que tinhas caído, que te tinham empurrado. Era assim ou não era? Eras fresco, sempre foste fresco, sem juízo nenhum, sempre a saltar de um lado para o outro, de quintal em quintal, de casa em casa, de mulher em mulher.”
Isto dizia ela, ajeitando o cabelo mal pintado de castanho, a raiz branca a crescer, a malinha de mão entre os dois, no banco de pedra de todas as manhãs, com uma bela vista para o jardim público.
Ele não a ouvia e repetia, na rouquidão da voz:
“Quem me dera, quem me dera naquele tempo…”
Ela olhava-o de través, com uma ternura azeda.
“Bem sei no que estás a pensar. Não é nas ameixas, não, sempre foste um valdevinos, mas agora acabou-se. É a vida, homem. Envelhecemos. O que passou, passou. Agora já não há nada a fazer.”
As mãos dele na bengala, uma sobre a outra, tremiam, de um tremor doente, que não era medo, que não era frio, que não era desejo. Deixou correr a água dos olhos. Queria lá saber que ela visse. Quem lhe dera poder ainda comer ameixas verdes como aquelas, deitar-se com mulheres frescas como aquelas.
Ela poisou uma mão sobre as dele, a parar-lhe a tremura, a adoçar a ternura.
“Deixa lá, meu velho desavergonhado. Quem me dera a mim ter para recordar frutos verdes, rapazes novos.”
Aí, ele afastou-lhe a mão das dele e endireitou as costas quanto pôde.
“Querem ver que a idade te deu para a asneira? Tem mas é juízo, mulher.”
Ela percebeu-lhe o sobrolho carregado e virou a cara para o outro lado, a esconder um sorriso.

“Vá lá, ao menos hoje sentiu ciúmes.”

Licínia Quitério

Sem comentários:

Acerca de mim

Também aqui

Follow liciniaq on Twitter
Powered By Blogger
 
Site Meter

Web Site Statistics
Discount Coupon Code