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28.2.18

A GENTE VAI



A gente vai e abraça os conhecidos e mais os outros que aparecem para uma conversa sobre a vida e sobre os livros e os projectos de mais vida e de mais livros. São falas em várias línguas, em redor de uma mesa, onde se vai comendo e falando e falando mais do que comendo, não porque as iguarias não sejam boas, mas porque todos têm vontade e pressa de falar. Todos menos eu que oiço mais do que falo, por condição e defeito e também porque me encanta ouvir o que dizem, procurar entender todo um vocabulário muito rico de construções e modulações, numa orquestra a muitas vozes, muitos risos, muitas exclamações.
A gente volta com os ecos das palavras preciosas, vibrantes, guardadas no ouvido interno, por uns tempos, talvez segundos, talvez meses, enquanto o coração lhes der guarida.

Quem regressa é sempre o outro, diferente do que foi, acrescentado, provavelmente melhor.

Licínia Quitério

26.2.18

OS VENTOS


Estão por toda a parte. Altos, esguios, com suas três velas atraindo os ventos. Erguem-se em bandos cada vez mais numerosos. Quando escurece, acendem um olhito não vá algum avião ou avejão com eles embater, trucidar-se. São afinal ventoinhas gigantes, altivas, de corpos anoréticos, rodando, rodando, enxameando colinas, relevos, zumbindo, zumbindo. Ao pé delas, os velhos moinhos de vento e farinha parecem anõezinhos reformados, saudosos dos seus tempos de convívio diário com os homens, seus donos e companheiros de labuta. Chamavam-lhes moinhos de vento. Dos novos, para que algum passado lhes seja conferido, dizem que são eólicos. Velhos, novos engenhos. Só o vento é o mesmo, caprichoso, suave, arrasador, genioso, invisível, eterno como a vida.

Licínia Quitério

20.2.18

PESAVA, SE PESAVA...


Pesava, se pesava, o balde de plástico azul, cheio de pequenas maçãs. Quase tanto pesava, se pesava, o saco com verduras, de mistura com batatas e cebolas. Longe ficava, se ficava, a loja conveniente aberta também aos domingos. Perigosa, se o era, a travessia da rua, os carros para baixo e para cima, e, ainda pior, o cruzamento, nunca se sabia de que lado iam aparecer os malvados carros. A rua empinava, se empinava, dali até à porta de casa.
Houve que descansar, pois houve. Encostou-se ao poste dos anúncios, poisou o balde, o saco. Bom seria, isso nem se fala, ficar ali para sempre, a apanhar o sol da manhã, deixar-se escorregar até ao chão, entre o balde e o saco. Os carros para baixo e para cima, zzzzz, zzzzzz, a dar-lhe sono, a fazê-lo fechar os olhos.
Avôzinho, precisa de ajuda. Não, senhor, agradecido.
Dobrou-se, pegou no balde, no saco. Pesavam, se pesavam. A porta de casa já à vista. Era só subir mais uns metros da rua que empinava, se empinava.

Ajuda, qual ajuda, sou algum velho, algum inútil?

Licínia Quitério

27.1.18

UMA PEQUENA ALDEIA



Numa pequena aldeia do litoral, ao fim da tarde, uma velha senhora foi violentamente agredida por um intruso que procurava dinheiro. Uma filha que com ela vive conseguiu pedir socorro que apareceu prontamente. Um jovem vizinho imobilizou o assaltante que foi levado pelas autoridades. A senhora está no hospital, foi operada e, como se diz, está estável. O que me ficou da notícia foi a eficácia da vizinhança, o pronto socorro, a ajuda, a comoção. Na aldeia todos se conhecem e são quase todos familiares que entre si trocam produtos das terras que ainda vão amanhando, que velam pela segurança dos mais velhos, que acolhem visitantes e dizem, leve estas florinhas, prove lá esta pinga. Não são perfeitos, são humanos, vivem em casas baixas, conhecem a aldeia e a vila próxima, mas são de lá, da terra pequena de campos arejados. É o sentimento identitário que os vai salvando, dos assaltantes, da solidão, da indiferença das novas selvas. Estou há horas a pensar nisto. Coisas minhas, sem importância.


Licínia Quitério

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