Nunca
fui o que se chama leitora compulsiva. Sei ler desde os quatro anos e comecei a
ser leitora por volta dos oito. Livros passaram a ser as minhas prendas de anos
que eu devorava, e relia, relia, até as historias ficarem dentro de mim para
sempre. Não eram muitos os livros, que o orçamento caseiro era bem fraco. Na primeira
adolescência, coincidente com primeiros anos do liceu, li tudo o que me aprecia
à mão, desde o Cavaleiro Andante, aos livrinhos de cowboys que os meus amigos
rapazes me emprestavam.
Quando
comecei a ter autorização para ir à biblioteca municipal, à noite, pude devorar
desde a Condessa de Ségur, aos Três Mosqueteiros, depois à Pearl Buck e, a
todos os que na época eram considerados leitura para meninas e que não eram nem
de longe os meus favoritos. Por obrigação escolar, com prazer, conheci os
clássicos, Júlio Dinis, Alexandre Herculano (todo), Eça (todo), Camilo (pouco).
Descobri então Victor Hugo e, em tempo roubado a estudos obrigatórios,
apaixonei-me por Paris, pela Esmeralda, pelo Jean Valjean.
Da
Biblioteca Municipal, passei para a carrinha da Gulbenkian que me deu tudo, os
neorrealistas, e Pratolini e Sartre, e Camus e Malaparte, e sempre um livro de
poesia. E havia uma prateleira fechada com livros que o funcionário me dava,
disfarçadamente, e dizia baixinho "vai gostar".
Curado
Ribeiro tinha um programa de rádio, "Leituras" que passou a ser o meu
guia espiritual na busca do que julgava o melhor. Cedo passei a trabalhadora
estudante, e as livrarias de Lisboa passaram a ser lugar de culto, para ler e
comprar, um ou dois livritos por mês, que para mais não dava o meu ganho em
explicações.
Não
sei bem quando comecei a ler menos, a deixar a meio livros que não me
satisfaziam. Começou o meu poder de crítica, de discernir o bom, o menos bom, o
execrável. Findou o tempo do endeusamento da leitura pela leitura. A Poesia,
essa, foi a minha grande descoberta e tudo procurava, e me extasiava, e me
irritava porque não compreendia, e só alguma filosofia dos compêndios me
ajudava naquela linguagem que de humanos não seria, pelo menos de outro tipo de
humanos que não faziam parte dos meus amigos, dos meus conhecidos.
Veio
o tempo da angústia de tudo querer ler e não poder, de quão pouca era a minha
vida para a torrente de saberes que os homens produziam, incessantemente, ao
longo dos milénios, muito antes da escrita em livros, muito antes de toda a
escrita.
Houve
até um tempo de pouco ler, de muito fazer, de beber a vida em longos tragos, de
saber do mel e do fel, de incitar os outros à leitura, de dar livros, num
proselitismo de uma nova época, mais de canto que de leitura.
Hoje,
que dei em escrever, leio, sim, leio, regularmente, sem pressas, sem a angústia
do livro por ler, tantas vezes em diagonal, em complacência pelo que julgo
menos bom. Há muitos autores que devia ter lido e ainda não li. Não li Proust,
de Joyce não li o Ulisses. Imperdoável, devia ter vergonha de o dizer, mas não
tenho. Sei que uma "madalena" me dará o tempo que perdi, que Lisboa me segreda a
viagem nunca feita.
Tenho
diante de mim um livro de poesia de Luís Quintais que ontem comprei, O Vidro.
Vou demorar umas horas a lê-lo. Há sempre uma novidade que me espera de que
saberei gostar, ou não. Sem remorsos, que a liberdade não tem culpas.
LICÍNIA QUITÉRIO
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