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20.5.12

AVE





Porque estive há pouco em Guimarães, lembrei-me de quando lá fui, com os meus Pais, pouco mais do que adolescente, de olhos arregalados para novas terras e ouvidos já atentos a outros falares. Há dias, o comboio levava-me lentamente pelo vale do Ave, lindíssimo de verdes e de águas e de sombras, manchado de esqueletos de fábricas, muitas fábricas abandonadas, desfazendo-se em estilhaços de vidro, em chapas de metal ferrugentas, janelas rasgadas num riso monstruoso. Pelo meio dos vinhedos, as velhas casas de granito ainda por lá estão, com ou sem gente, com longas histórias para contar. Foi no balanço ritmado do comboio que me revi junto de casas como aquelas, sendo eu muito jovem e muito curiosa. Amigos de meus Pais levaram-nos a visitar uma fábrica de cutelaria que funcionava num daqueles recantos de paraíso, perdido no verde vinha e no luzir das micas. Era a hora do almoço do pessoal, quase só mulheres que, sentadas no chão à sombra das parreiras, sorviam o caldo em malgas, que seguravam com ambas as mãos. Foi aí que senti os olhares das mulheres acocoradas a espiarem-me por detrás das malgas. Recordo o meu vestido em trapézio, o meu cabelo tufado, os meus sapatos de salto. E as minhas mãos muito brancas que me deram de repente uma imensa vergonha ao notar as mãos, da cor do granito, da cor do pó de polir os talheres, das mulheres na hora do caldo. As minhas mãos, ainda brancas, têm rugas e veias azuladas como as paredes das fábricas mortas, no vale do Ave, a caminho de Guimarães, muitos, muitos anos depois de eu ter aprendido como eram os olhos das mulheres suspensos do trapézio do meu vestido.

Licínia Quitério

1 comentário:

M. disse...

Muito belo, Licínia.
Assim nos refazemos. Olhando e pensando.

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