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1.10.07

"HÁ QUE RESISTIR!"

“Há que resistir!”, respondia invariavelmente a quem lhe atirava o habitual “Como vai isso?”. Firmava a bengala no chão, a evidenciar algumas sobras de vitalidade, abria quanto podia os olhos esverdeados, agora enevoados pela poeira do muito tempo vivido, e repetia, com a voz já a quebrar na dentadura que oscilava: “Há que resistir!”. Se o ouvinte era “da cor”, puxava conversa: “Isto está cada vez pior. E andaram aqueles homens a lutar tanto. Já não há homens assim.” Referia-se aos seus ídolos, aos que sofreram por resistir à opressão. Falava deles com espanto, com comoção, com afecto. Pobre, como sempre fora, continuava fiel aos princípios. Tinha, porém, ainda a lucidez suficiente para constatar como o mundo entretanto tinha mudado e as gentes com ele, o sentido crítico bastante para falar, em voz mais baixa, dos erros cometidos. A parca reforma, as investidas da morte que não deixava de se fazer anunciar, as decepções perante os caminhos percorridos ao arrepio do que sonhara, não lhe quebravam a verticalidade nem a tentação incontrolável de ajudar os mais fracos. Falava dos “velhinhos”que visitava e a quem levava um cigarrinho. “Qual vício? Qual quê? Um hábito próprio de homens. Já viram algum macaco a fumar? Faz mal. De acordo. Mas ele há coisas que fazem muito pior e de que não se fala. A porcaria toda que passa na televisão, por exemplo!”. Dava passadas miúdas e apressadas pela sala, como se precisasse de chegar, com urgência, a algum lado.
Falava muito dos seus heróis e pouco dele, um bravo resistente que sofrera longas prisões nos anos de chumbo, sem nunca ceder, sem “rachar”. No toca e foge com os “bufos”, gente pequena, soez, vigiando a soldo os movimentos dos homens que os chefes lhes diziam serem perigosos para o bem da Nação, sempre fora de uma arrogância que os desnorteava, dizendo alto e bom som verdades proibidas. Mas, quando as coisas aqueciam e os “senhores agentes” apareciam para a colheita dos resistentes, essa gente miserável, a quem eram dadas fardas e armas, fazia com orgulho o serviço sujo e acompanhava os superiores até junto dos homens inteiros, assistindo ao seu encurralamento em carrinhas que os transportavam para lugares cujos nomes são um ferrete na geração que deles se serviu para a vileza. Chamam-se Aljube, Caxias, Peniche. Chamam-se Tarrafal. Chamam-se Mónicas, Penitenciária. Chamam-se a vergonha de que tanto mal, por tanto tempo, tivesse acontecido.
Também ele foi, mais do que uma vez, nessas carrinhas. Sofreu o que não contava. Que importância tinha o que passara, ao pé do sofrimento dos outros, os que sobreviveram de mente sã ao impensável, os que não resistiram e morreram sem ter denunciado os companheiros, os que foram apanhados num sítio escuso onde um tiro os fez tombar.
Citava, com indisfarçada mágoa, jovens que tinha ajudado tanto quanto podia, nesses anos de míngua em que os pais, que ganhavam misérias, não lhes podiam pagar estudos e que agora arranjavam pretextos para não o visitar, para não lhe darem os dois dedos de conversa que era toda a paga esperada do bem que lhes fizera. Mas não se demorava muito no assunto. “Deixá-lo. Se não me quer ver, também não me faz falta”. Orgulhoso, como sempre. Aproveitara os tempos de clausura para se cultivar. Gostava de ler. Aceitava livros, emprestados. O dinheiro não dava para comprar grande coisa. Fora comerciante, como muitos dos seus camaradas perseguidos e apanhados nas rodas trituradoras do regime fascista.

(continua)

Licínia Quitério

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