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21.11.07

DESVAIRADAS GENTES (Folhetim)

Fascículo 2º.

Mas, como os gritos continuavam e encorpavam, acabaram todos por se postarem à beira do passeio falho de paralelipípedos. O Zeca com um pé na calçada, a Dona Amália com o avental dobrado em guardanapo a esconder algumas nódoas. O senhor António assomou à porta, porém sem transpor o degrau, não fosse algum malandreco aproveitar a distracção e, num abrir e fechar de olhos, botar a mão no alheio. E os gritos, agora já palavras perceptíveis Eu tiro-te as tripas, malandro, meu porco sujo. Pela saúde dos meus filhos, juro que a matrafona há-de ficar marcada para o resto da vida.
Bonito. Hoje havia cinema à borla. Mas quem seriam os maus?

..

Todos os membros da família (pai, mãe, filho e filha) eram baixotes, por isso mesmo nomeados na linguagem do bairro os caga-tacos. Barbeiro o pai, de estabelecimento tomado de trespasse há muitos anos, depois que viera da terra no limite nordeste da fronteira galaico-portuguesa. No estendal da marquise, as roldanas chiavam com o desfile diário das toalhas do ofício, impecavelmente brancas, que gente asseada como aquela não havia muita nas redondezas. Os cabelos de toda a família estavam sempre impecáveis, miraculosamente ao abrigo de ventanias ou de gestos bruscos que os tirassem do lugar pré-determinado. O filho, conhecido por o puto do barbeiro, era uma reprodução exacta do pai, tanto nas feições como na postura e, naturalmente, no penteado, apenas com uma poupinha um pouco mais elevada como marca da sua menoridade.
Era uma família tranquila, pouco ao jeito do bairro que gostava de alguns desalinhos, da sua marca de desordem controlada. Saíam e entravam sempre a horas certas. A mãe usava com garbo as arrecadas que lhe vinham do bragal. A vizinha do prédio contíguo era a que dialogava com ela mais assiduamente. A Natália vesga tinha na Felismina uma ouvinte pouco faladora que satisfazia plenamente a sua necessidade de debitar palavras em catadupa, enquanto lavava com a mangueira de plástico o terraço do rés-do-chão para onde as porcas lá de cima atiravam toda a casta de merda. As porcas arredavam a medo as cortinas e retiravam-se de pronto, porque não tinham vocabulário para a troca, nem físico que aguentasse um chapadão daquelas mãos habituadas a limpezas pesadas. Só o talho do Feliciano, para arrancar os vestígios de toda aquela carniça, a obrigava a esforços que nenhuma das donas fúfias aguentaria sem um chilique e uma baixa à enfermaria. E a conversa desfiava-se a competir com os latidos e saltos autistas do cão enlouquecido pelos jorros de água da mangueira. Uma vez estendida a roupa e varrido o quintal das folhas secas da nespereira, a Felismina retirava-se com um Até logo vizinha sem um ritus que denunciasse estado de alma, por muito pobrezinho que fosse. Era uma mulher de cara-de-pau, passada dos quarenta, ainda com alguma elegância de formas, contida pela rigidez que lhe haviam ensinado ser indispensável para a defesa da honra de uma mulher que não quer ser confundida com uma galdéria. Nos tempos que lhe sobravam (a mulheres como a Felismina sobram sempre tempos que preenchem furiosamente), fazia rendas e bordados em quadradinhos de pano que, com pequenos e habilidosos esticões, obrigava a terem ângulos precisos de noventa graus. Os quadradinhos iam-se juntando, em fiadas a que outras se casavam, e assim iam nascendo toalhas de mesa (duas delas davam mesmo para doze pessoas) que, depois de lavadas e engomadas, tomariam lugar nas duas arcas de madeira envernizada, cravejadas de tachas amarelas, compradas na feira do Relógio. Preço bem discutido Por esse dinheiro compro eu três ali abaixo. Venha cá senhora que eu não engano ninguém. Pela minha saúde que prefiro não ganhar dinheiro nenhum e estrear-me hoje com uma freguesa tão simpática. Deixe-se de cantigas e guarde lá as gabarolices para a sua mulher. Prontos, freguesa, não se zangue que o cigano só quer servir bem o cliente. E gritava Olha as arcas de macacaúba! Venham ver que pr’a semana não venho. Olha as arcas! É pessoal, esta querida já vai levar três. Venham ver! Não foram três, como dizia o vigarista, mas duas e não se arrependera do negócio até encontrar outras iguaizinhas, na feira da Terra, por quase metade do preço. Olhem, que fique para desconto dos meus pecados, e que o cigano arda nos infernos mais a trupe dele.

(continua)


Licínia Quitério

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