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15.5.08

DONA CLOTILDE (em folhetim)

5.º e último fascículo

O telefone tocou. O Ferreira atendeu. Mesmo a propósito, a aliviar a alta tensão que se sentia em volta. Para melhor ajudar a mudança de cena, acabava de chegar um montão de correio de que era preciso tratar. Dona Clotilde não se permitia ter trabalho em atraso. Contendia-lhe com os nervos. Não era pessoa de reclamar, de reivindicar, como diziam agora os “comunas”. Dizia a palavra espúria entre dentes, não fosse algum deles (que os havia por todo o lado) ouvir e dizer como a Dona Elvira, da outra vez, na sua linguagem desbragada, muito peculiar: “Isso de comuna por acaso é comigo? Pois, partindo do pressuposto, também lhe digo que antes comuna que cornuda como certas madamas que eu conheço, a armar ao fino.”. Se tivesse um buraco tinha-se metido por ele abaixo. Mas calou, a fazer de conta que não era nada com ela, as mãos a tremer, ainda por cima na altura crítica de lacrar um envelope. Continuava firme nos seus princípios sobre as regras de bem viver: “Ca-da ma-ca-co no seu ga-lho!” Silabava o aforismo, espaçadamente. Uma frase inteira sem “erres” era para ela um raro prazer de oratória que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar. Cumpria o seu dever o melhor que sabia e o patrão, graças a Deus, nunca faltara com o ordenadinho no dia certo. Isso mesmo. Como o mundo seria melhor se todos pensassem como ela e, muito mais importante, se assim procedessem. Respirava fundo, de bem consigo própria.
Quando aquilo aconteceu, gritou, chorou, arrepelou a cabeleira farta. O corpo ficou-lhe cheiinho de urticária. Parecia um bicho, salvo seja. Uma porcaria daquelas na sua casa, não! Passaram-lhe coisas muito más pela cabeça, confessava. Se tivesse uma arma ali à mão, tinha acabado com os dois. Mas não tinha, graças a Deus. O certo é que a expressão dela devia ter sido medonha, de tal modo que os dois pombinhos, apanhados em plena e gostosa prevaricação, vestiram à pressa o que tinha sido despido, pegaram nos sapatos, não perderam tempo a calçá-los, e, ala que se faz tarde!, desceram a escada íngreme como se tivessem asas e sumiram-se da vista, toldada pela raiva, da infelicíssima Dona Clotilde.
Como sofreu, dias e noites a fio sem pregar olho. A casa parecia-lhe enorme, sem aqueles dois. Um túmulo, a bem dizer.
Lentamente, começou a deitar contas à vida, às voltas com o seu tormento. Sentia um ódio feroz contra um mundo inteiro que a teria traído, deixando-a como barata virada, a espernear em busca do equilíbrio perdido que lhe assegurasse nada mais que a própria sobrevivência. Apercebeu-se de que, apesar do cansaço, não poderia abrandar o esforço. Tinha de conseguir. Só mais um impulso, bem controlado, e a carapaça voltaria a erguer-se sobre as patitas retorcidas, cambaleantes, a princípio, mas capazes de a tirar debaixo daquele tapete que ameaçava sufocá-la, antes que a curiosidade de algum gato a descobrisse e, num gesto ágil, lhe desfechasse o golpe final.
Deles, nem sinal. Até ao dia em que o telefone retiniu pelas concavidades da casa, de súbito despertada. Atendeu, toda a tremer. A voz dele, num sussurro: “Quero ver-te. Precisamos falar. Eu explico tudo.”. Um tampão na garganta, um zumbido a atravessar-lhe as têmporas. “Está? Está?”. A voz dele, numa interrogação onde se percebia insegurança. Alguém, que não ela, respondeu finalmente por dentro da sua voz: “És tu, Tavinho? O que aconteceu?”. A voz dele, a insistir, já mais seguro: “Precisamos falar. Não te aflijas que tudo se vai arranjar. Confia em mim.”. A mão que segurava o auscultador foi descaindo, o som da voz dele continuando, afrouxando, até não se fazer entender. Desligou. A voz do Tavinho, em eco: “Confia em mim.”. Sentou-se devagar no cadeirão de verga, apoiou as mãos no colo, o olhar fixo nas grandes flores dos cortinados de cretone. Assim ficou, até deixar de sentir as pernas, dormentes como a sua vida.
Graças, mais uma vez, à bondade do senhor doutor Justino, a troco de uns pratinhos de Cantão que ele dizia não querer aceitar, conseguiu aquele emprego no escritório. A princípio, custou-lhe um bocadinho a adaptar-se. Havia dias em que parecia que tudo lhe saía mal. Enervava-se. O cordel embaraçava-se, o tubo de cola esguichava por um furinho imperceptível que, só muito tempo depois, soube ter sido feito com um alfinete pelo “marroto” do senhor Martinho, um mulato danado para a brincadeira e que lhe dizia com a boca e as vogais muito abertas: “Ah Dóna Clótilde, se a senhóra quisesse, podíamos ser tão felizes! Cá o préto nunca se nega a um bom pedaço de mulher.”. Habituou-se depressa àquele novo mundo, povoado de gente diversa de cuja existência não suspeitara nas suas anteriores vidas de piano e de cretone. Certos dias, até arriscava trautear passagens de uma ária da “Trraviata”, que os colegas aplaudiam, embora invariavelmente um deles murmurasse: “Uum…Hoje há moiro na costa!”.
Já vários anos tinham decorrido desde que o acordo fora estabelecido, com honra para ambas as partes. Encontraram-se numa leitaria, longe do bairro em que habitava. Lembra-se ainda, como se fosse hoje, de todos os pormenores do encontro. Até da nova água-de-colónia que ele trazia. Um horror! Cheirava de longe a pecado. E ela coberta de pó-de-arroz, a esconder as olheiras de uma noite de insónia, nervosa como uma adolescente. Ouviu-o falar, falar, enquanto bebia um galão e mordiscava um bolo de arroz e ele sorvia uma imperial, acompanhada de tremoços. A espuma leve da cerveja ficava presa nas pontas do bigode, mas ele logo a limpava, com o triângulo do guardanapo. E ele falava, falava, e ela pestanejava e ouvia. Era um acordo sensato. Ela é que nunca pela cabeça lhe passara que um casamento também pode trazer o seu cansaço. “A rotina, estás a ver? Depois viria o desinteresse e isso, filha, seria o pior que nos poderia acontecer: a morte dum Amor tão bonito como o nosso.”. Ele previra a situação, um homem sabe sempre muito mais da vida do que as mulheres, coitaditas. O que ela vira no quarto, naquele dia? Pura imaginação. Ou melhor, alguma coisa sobrenatural dentro dela a dar-lhe a prever o que poderia acontecer se tudo continuasse como estava. Ele falava, falava... Ela chegara ao fim do galão e limpava as migalhas do bolo do tampo da mesa para o pires. “E agorra? E aquela… infeliz?”. Não se preocupasse. Tudo previsto. Ele era o Pai e estava a cumprir a sua missão o melhor que sabia. Havia de a ajudar a tornar-se a pessoa com que ambos tinham sonhado. Chegara o tempo de ela, Clotilde, ter algum descanso nas preocupações de velar por uma jovem, ainda por cima nestes tempos tão difíceis, tão cheios de armadilhas. Quanto a eles, iriam, se ela estivesse de acordo, iniciar uma nova fase das suas vidas amorosas, com todo o picante de um amor proibido, desses que nunca morrem, pelo contrário, se incendeiam com o passar do tempo. Ela escutava, escutava... Puxara da mala, tirara de lá o espelhinho e o bâton com que retocara os lábios, esfregara-os depois um no outro, a uniformizar o tom, e voltara a pôr tudo na mala. Sentindo um leve arrepio, abotoara o botão de cima da blusa de nylon cor de salmão. Arredava a cadeira para se levantar, quando ele, intrigado, lhe atirou: “Então, não dizes nada?”. Dona Clotilde, já de pé, empertigou os peitos, olhou Gustavo bem nos olhos e, sem expressão, como se desde sempre soubesse de cor a frase exacta, disse: “Passas a dormir lá às quartas-feirras.”.
Era em dias desses que a ouviam trautear a “Trraviatta”.

FIM

Licínia Quitério

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