
Reformado de muitos teclados, este será talvez o seu último amante. As teclas sob os dedos, contra os dedos, em leves corridas e arrastados andamentos. O brilho da aliança de casamento de décadas dizendo que alguma coisa ainda perdurava do rescaldo de todos os combates. Sobre o piano um caderninho, manuscrito a azul e vermelho, em letra média, desenhada. Os títulos, apenas. As notas, não. Essas estavam todas na cabeça, orgulhosamente adornada pela cabeleira branca, suficientemente volumosa para arriscar uma poupa à Tony Bennett. Um piano pequeno, new wave, um pianista discreto e baixinho, numa loja modernaça com requintes de decoração fin-de-siècle. Ficava ali bem o piano, na amplidão da sala. Não estorvava ninguém, era apenas um ponto no centro do espaço que as gentes rodeavam, sem o tocar, sem dar sequer por ele. Ninguém o olhava, ninguém o ouvia. Era um buraco negro com um assomo de teclado. Indiferente aos manequins de plástico e aos de carne e osso, uma velha senhora sentou-se numa poltrona, afagou discretamente a imitação de Gobelin, abriu uma revista de moda, traçou a perna e aquietou-se. Nunca virou uma página da revista. Olhou sempre o pianista, ou o piano, ou a música dolente e vulgar. Ao fim de longos minutos, ela apareceu-me como um espelho de moldura rocaille e nele juro que vi reflectido, não uma risca de teclas num buraco negro, mas o concerto a solo que um pianista sempre desejara travar perante a requintada assistência do palácio dos concertos da sua Viena imaginada.
Licínia Quitério
Foto retirada da net
5 comentários:
Gostei muito, Licínia. Especial.
Licínia,
bom dia, uma mão de café e outra no teclado deste abecedário musical, ouvindo as notas que se imprimem na manhã gorda...e tu sabes como gosto delas.
O sonho imaginado já não lhe cabe nas mãos, pertence a quem o escuta, a quem (ainda) a indiferença não mutilou...
Por momentos, realizado.
Por momentos, vivido.
Em ti.
Um beijo, um obrigada, aos senhores do sonho. :)
Que delícia!
Fiquei fã! O meu pensamento voou longe e imaginei-me ao lado do pianinsta, a sentir, a ver e enquanto ele tocava... a escrever!
Um beijinho, para si!
Vai pelo vento. Espero que chegue aí! :o)
Andreia
http://drei-schoolstaff.blogspot.com
Gosto destes concertos dados por pianistas baixinhos discretos e persistentes nos sonhos porque (vou-te contar um segredo que espero fique por este espaço musical) também um dia sonhei ser pianista. Tinha quase tudo para o ser: os dedos ágeis e longos, amor à música e sou baixinho. Por essa altura (a do sonho, ofereceram-me uma bola de futebol. Estás a calcular o que aconteceu depois: ingressei na Escola Naval e hoje sou piloto de testes da Fórmula Um.
Um concerto de sonhos perdidos, num ambiente nostálgico e a cheirar ligeiramente a alfazema. Perfeito!
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