Perturbavam-na, os loucos. Assediavam-na, dizia. Caíam-lhe
na casa, na mesa, no outro lado da linha. Uma frase de Gabriela Llansol – “Perder
a memória, pensei, é absorver o presente, numa constante iniciação, -
encontrar-se num estado de nudez.” – alertou-a.
Seria isso. Os loucos perderam a memória. No seu tempo repetitivo, falam e
falam, riem e riem, choram e choram. Ouvia-os, por curiosidade, por compaixão,
até chegar o dia de os despedir, de lhes dizer, sem dizer, vai, não voltes ao
meu mundo em construção, ainda. Dos cenários dos loucos, quase palpáveis,
absurdamente nítidos, ela temia as paredes viscosas, por onde eles escorregavam,
sozinhos, tão sozinhos, vestidos de antigas vozes. Sabia que os loucos haviam
de voltar, outros, os mesmos, não a fitando nos olhos, vagueando pela casa como
se fora a deles, suplicando-lhe, ajuda-me, e ela a afastar-lhes as mãos, os
braços, chamando-lhes o olhar, que não vinha. Procuravam-na, porque nela viam a
tal memória de que estavam nus, desconjuntados os corpos, falsamente frágeis,
falsamente robustos. Chegava o dia em que não abria a porta, quando os sabia
ali, do lado de fora, à espera de lhe contarem tudo o que os afligia, com que a
afligiriam. Em silêncio, por detrás da porta fechada, ouvia-lhes os passos, a
afastarem-se, a retrocederem, até deixar de os ouvir. Sentia um alívio
momentâneo, uma picada no peito, talvez eu pudesse, talvez. Porque haviam de a
procurar, a ela, de memória longa, enredada em contínuas revisitações? Quem lhe
dera perdê-la, “absorver o presente, numa constante iniciação”, esperando o
tempo em que os loucos não desviariam os olhos dos dela, e não a perturbasse o
visco que lhes cobria as paredes.
Licínia Quitério
Sem comentários:
Enviar um comentário