25.7.25
23.12.24
A RAPARIGA E O NATAL
Era uma rapariga um pouco estranha. Não gostava de festejos de Natal. Se pudesse fugia naqueles dias, mas não podia. Convidavam-na para uma consoada, e ela, que não acreditava em nascimentos divinos, inventava maneiras de corresponder ao convite, de não ofender as pessoas, carregadas de boa vontade. Tanto quanto conseguia, transformou o Natal numa espécie de carnaval, fez-se personagens diversas, de filha do pai natal a rena. Os miúdos achavam esquisito, os adultos pensavam, ela tem piada mas fica um bocado ridícula. No seu papel de alien natalício, faziam-na distribuir os presentes, os infindáveis, incomensuráveis, intragáveis presentes e agoniava-se com o interesse guloso dos graúdos pelas bugigangas, pelo preço das bugigangas, pela falta de originalidade das bugigangas.
Foi assim até que as crianças cresceram, poucos adultos cresceram, alguns adultos desistiram, outros convivas vieram, e a rapariga um pouco estranha, que se fez uma idosa mais estranha ainda, mudou de consoada, de convivas. Deixou de se inventar em carnavais fora de tempo, abrandou excessos, como fazem as pessoas normais. Prepara o natal da transparência.
Licínia Quitério
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1:52 da tarde
18.11.24
ROMÃS
Dois pequenos frutos pendentes da mãe árvore fazem-nos pensar romã, um nome tão bonito como bonita a sua vermelha redondeza. As discretas coroas conduzem-nos ao Natal e aos seus mágicos reis. Se o nosso olhar neles se demora, os dois pequenos frutos aguçarão em nós a vontade de desvendar os segredos da sua polpa granulosa, em dádiva generosa dos múltiplos translúcidos bagos. Fácil pensar em trincá-los, saboreá-los, um sumo vermelho a pintar-nos os lábios, a manchar o bibe da Menina que fomos, a imaginação à solta, leves, leves…
Licínia Quitério
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Licínia Quitério
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11:00 da manhã
5.11.24
2º. FESTI22º FESTIVAL LITERÁRIO DE MAFRA
“AQUI também há quem escreva”. Eis o tema desta mesa com três autores de alguma forma relacionados com a vila de Mafra.
Foi o advérbio AQUI que me pôs a reflectir na ideia de lugar geográfico como alibi para quem escreve, qual embalo e respiro, mais ou menos insidioso, mais ou menos perceptível. Este pensamento, aliás, livrou-me do embaraço de não conseguir alinhar algumas palavras a propósito, neste encontro para que fui generosamente convidada.
E foi então que, num refrescar de memórias, me recordei que no meu livro “Os Olhos de Aura”, fiz de Alba, terra mítica, um actor que percorre toda a novela, sublinhando a acção e convocando os personagens.
Da terra, Alba, fala assim o narrador no excerto que passo a ler:
“Alba assiste, impávida, aos tormentos dos vivos, à usura do tempo, às derrocadas e às obras, infindáveis obras de construção dos ossos, reconstrução da pele, por necessidade ou por fastio, por sede de mudança que o estaticismo de Alba não estimula. Se Alba se chamou a terra, razão houve ou não. Talvez um som que nasceu numa boca ao madrugar, depois caminhou por outras bocas, e foi mudando, encurtando, ao jeito de quem chegou, e foi nome até ser o vento na chaminé, o choro de criança acabada de nascer. De muitos ventos, muitos nascimentos, Alba foi crescendo, alastrando, como animal deitado a olhar o mar, lá longe, muito longe, só o desenho de um barco no horizonte, só a brisa da tarde que põe na boca um ligeiro sabor a sal. Dos prados se fizeram casas e as casas traçaram ruas, e os rebanhos foram devorados e o lugar deles passou a chamar-se praça ou largo ou terreiro, se for maior e mais antigo. Alba é rósea ao despertar, dourada ao meio do dia, de noite agiganta-se e tudo se dissolve em seu negrume.
Desta terra, Aura, a Mulher, não sabe falar, por isso a inventa, desgraçada e poética, tal qual a insânia e o vento leste."
Termina aqui o excerto do livro.
Claro que Alba não é Mafra, pesem embora certas alusões quase identitárias, mas a ficção é afinal isso mesmo: o poder de tudo enformar, tudo transformar.
Não posso deixar de referir o livro que pôs lá dentro este Convento, à sombra do qual nasci e cresci. Li o Memorial com encantamento, com pressa, e cedo corri ao encontro do autor que assim falava da minha casa grande para a levar mundo fora. Disse-lhe:
“Gostei que me tivesse ensinado a ver Mafra sem o Convento. Agora olho para o monte antes dele e consigo pensar-me doutro modo.”
Saramago ouviu-me, fez um sorriso de boca fininha, fixou-me por breves segundos e deu-me um autógrafo: “À Licínia que é de Mafra”.
Aí está. Mafra é este lugar, esta pedra-mãe, este AQUI aonde voltei para mais viver e escrever, quando os tais ventos sopram de feição. Estou certa de que Alba não teria os traços que lhe dei se eu não fosse de um lugar real que, sem me dar conta, se impôs aos olhos de Aura, a Mulher.
Permito-me afirmar que, se bem procurasse, também haveria de encontrar poemas meus em que Mafra, ou Alba, ou a Aldeia da Fonte Branca, ou outros lugares reais ou imaginados, me segredaram palavras e sentidos que nunca saberei como ali vieram parar. Mas isso são os estranhos, insondáveis, maravilhosos caminhos da Poesia.
AQUI também se escreve, e é isso que importa.
Licínia Quitério
Mafra, 3 de Novembro de 2024
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9:15 da manhã
7.9.24
OS SÓTÃOS
Não
conhecemos tudo o que guardam os nossos próprios sótãos.
Sabemos
de madeiras que revelam o cheiro das árvores-mães. Pensamos sândalo, ou cânfora ou pau-santo ou
outra palavra que aprendemos sem alguma vez termos sabido das florestas do
outro lado do mundo.
Nos
sótãos há poeiras várias que invadem os espaços, mesmo os que medeiam gerações.
Outras ainda não concluiram a queda e adejam contra a luz das frinchas do
telhado.
Nunca
chegamos a saber o que se guarda nas caixas mais ao fundo dos esconsos.
Desistimos de explorar esses lugares sombrios para melhor inventarmos restos de
amores impossíveis e histórias de heranças ferozmente repartidas.
Os sótãos
guardam os nossos segredos nunca revelados, em escaninhos inacessíveis a mãos
humanas, ao abrigo da mais insensata espionagem. Passado muito tempo, já nós
não recordamos o segredo que foi nosso e mora dentro da caixa soterrada em
mantos sucessivos de poeira lá onde não chega a luz coada pelas frinchas do
telhado.
Falar de
sótãos não será o mesmo que contar passados, embora a poeira seja igual,
permanente, persistente.
Licínia Quitério
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2:25 da tarde
11.8.19
15.7.19
DELÍRIOS NA RUA DO SOL
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Licínia Quitério
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12:26 da tarde
A ALDEIA DA FONTE BRANCA
Licínia Quitério, em "A Aldeia da Fonte Branca", a publicar
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12:14 da tarde
OS OLHOS DE AURA
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Licínia Quitério, em "Os Olhos de Aura", 2017
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12:10 da tarde
A METADE DE UM HOMEM
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12:05 da tarde
28.2.18
A GENTE VAI
A gente vai e abraça os conhecidos e mais os outros que aparecem para uma conversa sobre a vida e sobre os livros e os projectos de mais vida e de mais livros. São falas em várias línguas, em redor de uma mesa, onde se vai comendo e falando e falando mais do que comendo, não porque as iguarias não sejam boas, mas porque todos têm vontade e pressa de falar. Todos menos eu que oiço mais do que falo, por condição e defeito e também porque me encanta ouvir o que dizem, procurar entender todo um vocabulário muito rico de construções e modulações, numa orquestra a muitas vozes, muitos risos, muitas exclamações.
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1:21 da tarde
26.2.18
OS VENTOS
Estão por toda a parte. Altos, esguios, com suas três velas atraindo os ventos. Erguem-se em bandos cada vez mais numerosos. Quando escurece, acendem um olhito não vá algum avião ou avejão com eles embater, trucidar-se. São afinal ventoinhas gigantes, altivas, de corpos anoréticos, rodando, rodando, enxameando colinas, relevos, zumbindo, zumbindo. Ao pé delas, os velhos moinhos de vento e farinha parecem anõezinhos reformados, saudosos dos seus tempos de convívio diário com os homens, seus donos e companheiros de labuta. Chamavam-lhes moinhos de vento. Dos novos, para que algum passado lhes seja conferido, dizem que são eólicos. Velhos, novos engenhos. Só o vento é o mesmo, caprichoso, suave, arrasador, genioso, invisível, eterno como a vida. Licínia Quitério |
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4:16 da tarde
20.2.18
PESAVA, SE PESAVA...
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9:15 da tarde
27.1.18
UMA PEQUENA ALDEIA
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3:40 da tarde
21.12.17
O POÇO
Na praia um poço de oiro. Viram-no, as gaivotas. Uma delas
bebeu um golo da súbita incandescência. A pele do mar ganhou escamas miúdas de
luz e sombra. A areia ruborizou-se ao receber certa hora dos mágicos. Foi o
solstício e eu estive lá. Licínia Quitério |
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4:57 da tarde
15.12.17
OS MICROCOSMOS
Em pequena eu construía jardins, miniaturas de jardins. Uma pétala era uma flor, um pecíolo um tronco de árvore, uma folha podia ser um lago, que um jardim sem lagos não é jardim. Folhas secas esmagadas desenhavam caminhos por entre aquela vegetação toda. Eu preocupava-me com a simetria dos canteiros, por isso os meus microjardins pareciam-se com os jardins barrocos, digo eu agora. Eu gostava de construir mundos pequeninos onde me pudesse passear sem ser levada pela mão. Mundos sem os perigos que os adultos temiam. Revolvia a terra com as mãos na cata de pedras minúsculas, de preferência de várias cores. Ocupava muito tempo a limpá-las e depois a construir com elas cidades pequeninas. Uma pedra uma casa, outra pedra outra casa, muitas casinhas. Só faltavam as pessoas, ou não faltavam, porque às vezes eu podia vê-las, muito apressadas, de casa em casa. Algumas corriam e eu só não podia saber de que cor eram os olhos delas, porque isso era muito difícil de pensar. Também gostava de ver as minhas cidades vermelhas, com pessoas vermelhas, que subiam e desciam e saltavam nas brasas da lareira. De manhã já não havia ninguém nessas cidades que passavam a ser escuras, sem graça, e eu queria mesmo era saber para onde tinha ido toda aquela gente que eu tinha visto ao serão. Os meus jardins cresceram, as cidades também, e hoje sei que há de facto cidades vermelhas de gente viva e cidades escuras de gente morta. Sei, e por isso, sempre que olho o fogo na lareira, volto a admirar aquela gente pequenina numa grande azáfama, a subir, a descer, a saltar. Às vezes adormeço e quando acordo a lenha já não arde. Levanto-me sem olhar para a escuridão das cidades, quero dizer, da cinza na lareira.
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7:17 da tarde
26.11.17
A SECA
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2:42 da tarde
23.11.17
NOITE
O rodado dos carros na rua produz agora um ruído abafado, a evidenciar a lâmina de água que se interpõe entre o asfalto e a borracha. De o ouvir, adivinhamos os salpicos que vão saltando das rodas. Se alguém passar na berma dos passeios, talvez os sinta nos pés, no fato, e se afaste a evitar o incómodo. A luz dos faróis acende a poalha de chuva que vai caindo, oblíqua, mansamente. Os habitantes dos carros entrarão em casa desejosos de conforto, de lume, de comida cheirosa. Calçam chinelos, esfregam as mãos e dizem, até que enfim a chuva. São felizes os humanos que neste momento imagino. Tem de haver gente feliz para que as histórias não morram. Licínia Quitério |
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7:08 da tarde
13.9.17
6.8.17
MISTER BROWNE
Numa dessas conversatas, preparei atalhos para lhe perguntar o que pensava de Hiroshima. Mister Brown retorceu as pontas do bigode, disse ahm, ahm, como dizem sempre os americanos a iniciar as frases, e, perante o meu olhar a filar a resposta, pausadamente, muito pausadamente, ahm, ahm, Maria, Truman fez o que tinha de ser feito, para evitar muito mais mortes. Assim, sem um lamento. Percebeu que eu não estava confortável. Disse, yes Maria, awful, sure Maria, war is awful.
Passaram 72 anos sobre um dos maiores crimes da humanidade e todos os anos por esta altura recordo Mister Browne, a água límpida da sua piscina, o seu pragmatismo a falar de Hiroshima.
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6:53 da tarde
1.8.17
ARQUITECTURA
Gosto quando
a arquitectura nos diz de encontros e desencontros, de gostos, funções, testemunhos
de muitas e variadas ordens de sucessivos mandantes, e nos deixa perplexos na
procura de um fio que nos conduza e nos conte histórias de destruições, de
cataclismos, de faustos e misérias e básicas utilidades. A segurar a história
estão as pedras, as dos tempos muito antigos, as de hoje, e a juntá-las a cal,
a cobri-las a tinta. Da gruta à pirâmide quanto caminho andado, quanto deserto
nascido. Do palácio à choupana, quantos amores vividos, quanta fome, quanta
sede de mar. De tudo isto me alimento
quando inauguro um sítio escuso, algures, na torreira da tarde, onde ninguém se
demora, que ninguém guarda na memória.
Licínia Quitério
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9:23 da tarde
22.6.17
O MEU PAI
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12:43 da tarde
3.6.17
A VELHA VIZINHA
Tocou à campainha. Vinha de robe azul claro, chinelos de tiras, os braços apoiados em canadianas, e tremia e dizia, desculpe, desculpe, eu estou muito aflita, se a senhora me fizer o favor de me ajudar, o telemóvel, não percebo de telemóveis, quero telefonar ao meu filho, ele ainda não apareceu hoje, estou muito aflita, não consigo ligar-lhe, aparece um cadeado, eu não percebo nada destas coisas, se a senhora puder. O meu marido, o meu marido desapareceu está maluco de todo, tem Alzheimer, saiu e ainda não voltou, deixou a casa toda por arrumar, o lixo espalhado e eu nesta desgraça é que tive de juntar tudo, ai se a senhora puder.
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8:17 da tarde
30.5.17
A MULHER DOS SÁBADOS
Aparece aos Sábados, o dia da folga, presumo, de trabalho precário, de salário pequenino. Isto a avaliar pela qualidade da vestimenta, dos sapatos, pelo saco dos pertences. Tudo nela é sinal de escassez de meios, de solidão de fim de semana.
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9:20 da manhã
1.5.17
27.4.17
UM CASAL TRANQUILO
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5:08 da tarde
23.4.17
O LIVRO
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1:21 da tarde
21.4.17
DONA TELA
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4:12 da tarde
5.4.17
PRIMAVERA
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7:38 da tarde
31.3.17
AGITAÇÕES
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8:40 da tarde
29.3.17
A MULHER
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4:37 da tarde
17.3.17
HISTÓRIAS
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1:10 da tarde
11.2.17
A MIÚDA
A miúda passava todos os dias, à mesma hora, defronte do
café dos velhos que a seguiam com olhos saudosos de juventude. A miúda não
reparava neles, ia sempre apressada, segura de querer chegar onde a esperavam.
Foi assim até ao dia em que a atenção dela foi tocada por um baque surdo e uma
vozearia de aflição. Virou-se, deu uns passos atrás, perguntou, precisa de
ajuda. Ajude-me a levantar, menina, estes velhos não conseguem. Ela sorriu,
abraçou-o pelas costas e ergueu-o. Estava pálido, ela só se foi embora quando o
viu sentado e a beber um copo de água. Os outros velhos diziam frases
desgarradas, que coisa, tu vê lá, estás bem, ó pá atiraste-te para o chão para
a miúda te agarrar, cala essa boca.
Entre dois golos, ele só disse, baixinho, para ela não
ouvir, é tão bonita
.
Licínia Quitério
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8:53 da tarde