Site Meter

15.7.19

DELÍRIOS NA RUA DO SOL

Bebido e comido o que havia para beber e comer, Benito refastelou-se na cadeira, cruzou as mãos sobre o volume do ventre, pestanejou, bocejou e acabou por fechar os olhos e deixar descair o queixo no peito. Tão súbita sonolência terá sido certamente causada pelo solinho bondosamente coado pelas ramadas da cerejeira ou então por ter dormido mal de noite. Não devia ter comido tanto à ceia, mas não resistiu ao resto da carne guisada que a filha lhe tinha trazido ao almoço. Deve ter sido por isso  que a insónia apertou de tal modo que já soavam as quatro no relógio da igreja e ainda ele andava às voltas na cama. Levantou-se, foi beber água, espreitar à janela, nem vivalma, que raio estava ele ali a fazer aquelas horas, e voltou para a cama. Contou carneiros, e nada, duas vezes se levantou para ir urinar, a próstata anda a fazer das suas, o médico avisou-o, falou-lhe em operação, uma gaita, só de pensar nisso vinha-lhe um mau humor dos diabos, ai de quem o contrariasse nessas ocasiões.
Falta faz-lhe a mulher, já oito anos passados sobre a data em que se foi para a terra da verdade e ele não se habitua a viver sozinho. A almofada dela continua na cama, ao lado da sua, olha-a ao acordar e fica sempre triste por ver que continua limpa e lisa como quando se deitou. Às vezes passa-lhe a mão, a alisá-la, ao de leve, na pele a memória da cabeleira dela, sempre bonita, mesmo quando embranqueceu, a bem dizer, ficou ainda mais bonita, pelo menos aos olhos dele. O retrato de Eulália na mesa de cabeceira, a dar-lhe os bons dias, com aquele sorriso meigo que o encantou nos verdes anos de serem namorados, prometidos, como costumava dizer-se.

Licínia Quitério, em "Delírios na Rua do Sol", em publicação

Sem comentários:

Acerca de mim

Também aqui

Follow liciniaq on Twitter
Powered By Blogger
 
Site Meter

Web Site Statistics
Discount Coupon Code