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15.7.19

A METADE DE UM HOMEM


A pátria sabe a gin tónico com rodelas de chouriço, isto disse o Sousa na tarde em que de tão bêbado contou que tinha visto cabeças espetadas em paus, na beira da picada. Brancas ou pretas, foi o que perguntaram e ele já não respondeu. Caiu de borco, tiveram que o arrastar para dentro da caserna e ali ficou dois dias em delírio de febre. Aquele calor punha lâminas sujas nas palavras.
Nervoso, na previsão de uma operação no mato de madrugada, atormentado pelo silêncio que era de pedra e doía, Zé Manel desejou com toda a força uma voz que o cortasse, uma voz doce de mulher, mulher branca, uma voz que lhe cantasse baixinho, only you…, uma voz que apagasse as das outras mulheres, as pretas, que guinchavam como os coelhos na capoeira da mãe quando ela os pegava pelas orelhas, hoje vais para o tacho, vais. Elas guinchavam de igual jeito quando os homens brancos as pegavam, as deitavam à força no capim, as penetravam, loucos de cio, de cantáridas, de pólvora, de guerra. Na escuridão da noite africana, a voz da Ju, only you…, e ele, de braços erguidos, prontos a abraçar a dona daquela voz, que o visitava, finalmente apareces, por onde tens andado. O Baptista a abaná-lo, acorda, pá, são horas, os cabrões hoje não nos escapam, e os olhos do Baptista estavam vermelhos, grandes, pareciam querer desorbitar-se.

Licínia Quitério, em "A Metade de um Homem", 2018

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