Há dias assim. A gente acorda para continuar o calendário e
as ideias desarrumam-se em frases soltas, palavras soltas, aparentemente sem
nexo, que raio, são restos de ontem, de um outro ontem mais antigo. Um desenho
vago no vidro da janela, um passante que sobe a rua, não o conheço, cada vez
cada vez há mais desconhecidos, cada vez há mais gente a passar, ou eu deixei
de os saber contar, o homem coxeia, dantes ninguém coxeava, como tudo mudou.
Mudou muito aquela mulher que ontem se sentou à minha mesa, pediu, posso, e já
pendurava a mala nas costas da cadeira que arrastava, não está a conhecer-me,
não, não estou a ver, eu nunca reconheço alguém que vem do fundo do tempo,
aquela mulher velha que eu não sei quem é, vem de dentro da mulher menina que,
essa sim, eu conheci, dantes eu conhecia muita gente, sabia-lhes os nomes, as
moradas, hoje sei lá quem são, onde moram, por que será que se lembram de mim.
Ela continua, eu sou a F, sou irmã, sou filha, não, mãe não sou, a outra é que
é. Quem será ao certo e o que quererá de mim esta mulher ali na minha frente,
os olhos muito abertos por detrás das lentes, os olhos dos velhos nem sempre
encolhem, por vezes ficam assim, como os dela, desmesuradamente grandes. Já
disse quem é, ainda não percebeu que eu não sei ao certo quem é, começa a desenrolar
o novelo da história que me quer contar, é para isso que ali está.
Sempre
aparece alguém, como ontem, que me quer contar uma história, a sua história, a
história que não é a sua mas que quer mostrar, uma pessoa sem uma história
digna de ser contada não chega a ser uma pessoa que valha a pena ser ouvida,
mesmo que seja em faz de conta, como eu faço, a espreitar as entrelinhas, no
que não diz mas eu oiço, no que desdiz e eu não oiço. São assim as pessoas que
me contam histórias, não, não mentem, inventam-se, que bem precisam de ser
outras, nem que seja por dentro, muito por dentro, como se dessem lustro à
carcaça. Histórias que se enrolam no meu despertar e me dão frases soltas,
palavras soltas, aparentemente sem nexo, como as de hoje.
Licinia Quitério
Sem comentários:
Enviar um comentário