A mulher diz, sente-se, coma, aqui come-se o que vem para a
mesa. A mulher não pergunta se queremos mais,
mas a gente percebe que podemos servir-nos as vezes que quisermos. A mulher não
diz obrigada, mas a gente sabe que gosta de mimos. A mulher ameaça, olha que
levas, mas a mão suspende o gesto, a saber-se obedecida. A mulher tem opinião,
declara-a, defende-a, com a fala grossa e o corpo adiantado. A mulher gosta de
ser ouvida a desfiar a vida, o rosário de dores que se orgulha de ter vencido,
com muito esforço, sem nunca ter deixado de ser brava, digna. Ela diz “séria” e
não “digna”, com toda a razão da palavra. É impiedosa para com quem a fez
conhecer a miséria, a dela e a dos outros. Fala da ditadura e explica-a como
ninguém, porque a sentiu, a entendeu, a adivinhou. Sente-se vingada do silêncio
que lhe impuseram, do medo da prisão que levou os pobres da aldeia, coitados, o
que sofreram, malvada gente. A mulher conheceu outros mundos e neles sofreu e
aprendeu o que escola alguma pode ensinar. Sente-se vingada da pobreza porque
hoje tem o conforto que a labuta lhe deu, tão duras as tarefas que lhe
rebentaram o corpo, a fazê-la gemer baixinho.
Oiço-a com enlevo, com curiosidade, até que ela põe termo à
conversa, levanta-se, olha em volta e diz, para onde foram todos, vou ver
deles, assim à maneira de recado para mim, por hoje já ouviste o que eu quis
contar, agora chega. É ela quem decide quando começa e acaba a conversa.
Quem quiser saber o que foi o fascismo em Portugal tem de
encontrar mulheres como esta, de as ouvir, com atenção, com a humildade de quem
tem muito para aprender. Aconteceu-me conhecer esta que tanto me ensina.
Licínia Quitério
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