Era Abril e a década contava-se por sessenta. Paris era uma
ideia, um desejo, um encontro previsto. Trabalhava para pagar os estudos,
arduamente, num afã que a juventude permite. A dureza das muitas horas de
trabalho adiava, inviabilizava, destruía sonhos de pequenos vícios, pequenos prazeres, mas a
força de quem tem uma vida a começar não admitia desistência. Havia quem só estudasse, quem não tivesse
prazeres adiados, quem navegasse em águas mornas, como se natural fosse essa
bem aventurança. Assim eu vivia, com um
pé no estribo outro no chão, aguardando os dias de montaria, rédea larga, mundo
fora. Sabia bem que havia os outros que nem de livros, nem de sonhos, só comida
pouca, cabeça baixa. Sabia também dos que não sabiam, dos que fingiam não
saber, dos que não se importavam.
Paris era então um portão a transpor, um lugar de palavras
proibidas, de Montesquieu, de Sartre, de Trenet, de Duras. “Hei-de lá ir”
tornou-se um lema, uma divisa, uma profecia.
Era Abril quando me achei, com os outros das mesmas
sebentas, com um Cartão Internacional de Estudante, com uma mala grande demais,
com um coração a dilatar, na estação de Santa Apolónia, esperando o SUD, as
três letras que queriam dizer viagem, partida, deserção ou aventura. Na extensa
plataforma da estação, havia os outros, com outras malas, muitos sacos, muitos
cestos, sem o sorriso dos meus, com o cenho carregado e húmido dos outros. A
nossa tagarelice nervosa destoava do silêncio e da rouquidão dos outros. Logo
ali comecei a achar que o meu sonho de Paris não era igual aos sonhos deles. Eu e os meus íamos à procura das palavras proibidas - liberdade,
igualdade, fraternidade-, eles iam em demanda das palavras perdidas ou nunca
achadas - trabalho, pão, dinheiro, casa-.
Dentro do comboio, atulharam os corredores de cestos, de
malas, de sacos, que guardavam, com a preocupação de quem não pode perder o único alimento. Pelo
caminho, no interior dum país pardacento, entraram mais e mais, e os corredores
ficaram a abarrotar de corpos e de tralha. Foram trinta e seis horas de coabitação,
mesmo assim de costas voltadas, dia e
noite, nós os das mesmas sebentas e eles os das mesmas queixas. Paris
esperava-nos e a cada um tinha para oferecer ou para negar palavras de libertação ou de sobrevivência.
Cansados todos do desconforto da viagem, o SUD despejou-nos na gare de
Austerlitz que se encheu de linguajares diversos, do meu país de gente diversa.
Foi aí que gravei na memória tantos homens de chapéu escuro, tantas mulheres
sem crianças, correndo numa fuga de um país ingrato, na esperança de alguma
recompensa prometida. Foi aí que me ficou até hoje o remorso de termos começado
a falar francês, meu pobre francês de
escola, para que os de lá não nos relacionassem com os outros, os que quase
corriam enquanto soltavam imprecações, no mais puro vernáculo do português
falado em suas terras, sem temor nem pecado.
Paris não me desiludiu, não, aprofundou mesmo a minha
admiração, o meu espanto pela cidade aonde haveria de voltar e voltar, já sem
vergonha de falar português, porque as palavras que eu procurava tinham deixado
de ser proibidas.
Era isto que tinha para contar sobre a emigração que voltou, a desgraçada, com
outras roupagens, outras promessas, outros incertos destinos, neste mundo de
fronteiras abertas e tantos sonhos fechados.
Licínia Quitério
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