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3.8.14

EMIGRAÇÃO


Era Abril e a década contava-se por sessenta. Paris era uma ideia, um desejo, um encontro previsto. Trabalhava para pagar os estudos, arduamente, num afã que a juventude permite. A dureza das muitas horas de trabalho adiava, inviabilizava, destruía sonhos de  pequenos vícios, pequenos prazeres, mas a força de quem tem uma vida a começar não admitia desistência.  Havia quem só estudasse, quem não tivesse prazeres adiados, quem navegasse em águas mornas, como se natural fosse essa bem aventurança.  Assim eu vivia, com um pé no estribo outro no chão, aguardando os dias de montaria, rédea larga, mundo fora. Sabia bem que havia os outros que nem de livros, nem de sonhos, só comida pouca, cabeça baixa. Sabia também dos que não sabiam, dos que fingiam não saber, dos que não se importavam.
Paris era então um portão a transpor, um lugar de palavras proibidas, de Montesquieu, de Sartre, de Trenet, de Duras. “Hei-de lá ir” tornou-se um lema, uma divisa, uma profecia.
Era Abril quando me achei, com os outros das mesmas sebentas, com um Cartão Internacional de Estudante, com uma mala grande demais, com um coração a dilatar, na estação de Santa Apolónia, esperando o SUD, as três letras que queriam dizer viagem, partida, deserção ou aventura. Na extensa plataforma da estação, havia os outros, com outras malas, muitos sacos, muitos cestos, sem o sorriso dos meus, com o cenho carregado e húmido dos outros. A nossa tagarelice nervosa  destoava  do silêncio e da rouquidão dos outros. Logo ali comecei a achar que o meu sonho de Paris não era igual aos sonhos deles.  Eu e os meus íamos  à procura das palavras proibidas - liberdade, igualdade, fraternidade-, eles iam em demanda das palavras perdidas ou nunca achadas - trabalho, pão, dinheiro, casa-.
Dentro do comboio, atulharam os corredores de cestos, de malas, de sacos, que guardavam, com a preocupação  de quem não pode perder o único alimento. Pelo caminho, no interior dum país pardacento, entraram mais e mais, e os corredores ficaram a abarrotar de corpos e de tralha. Foram trinta e seis horas de coabitação, mesmo assim de costas voltadas,  dia e noite, nós os das mesmas sebentas e eles os das mesmas queixas. Paris esperava-nos e a cada um tinha para oferecer ou para negar  palavras de libertação ou de sobrevivência. Cansados todos do desconforto da viagem, o SUD despejou-nos na gare de Austerlitz que se encheu de linguajares diversos, do meu país de gente diversa. Foi aí que gravei na memória tantos homens de chapéu escuro, tantas mulheres sem crianças, correndo numa fuga de um país ingrato, na esperança de alguma recompensa prometida. Foi aí que me ficou até hoje o remorso de termos começado  a falar francês, meu pobre francês de escola, para que os de lá não nos relacionassem com os outros, os que quase corriam enquanto soltavam imprecações, no mais puro vernáculo do português falado em suas terras, sem temor nem pecado.
Paris não me desiludiu, não, aprofundou mesmo a minha admiração, o meu espanto pela cidade aonde haveria de voltar e voltar, já sem vergonha de falar português, porque as palavras que eu procurava tinham deixado de ser proibidas.
 
Era isto que tinha para contar sobre a emigração que voltou, a desgraçada, com outras roupagens, outras promessas, outros incertos destinos, neste mundo de fronteiras abertas e tantos sonhos fechados.

Licínia Quitério

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