Se eu soubesse escrever uma novela, situaria a acção em
Portugal, nos anos setenta, no ante e após revolução de Abril. A acção
decorreria inteiramente numa casa de Lisboa, em rua antiga, uma casa daquelas
com muitas divisões, um quarto chamado independente porque tinha porta directamente
para o patamar da escada, uma cozinha ampla com chão de mosaicos com desenhos a
simular velas de moinhos, brancos e vermelho escuro. Havia de ter uma marquise com
acesso a uma chamada escada de serviço, em ferro, de degraus sem espelho, impossível
para quem sofresse de vertigens. Não haveria de me esquecer de citar a gaiola
do canário com os seus trinados ao nascer do sol, a fazer nascer instintos
assassinos nos hóspedes. Sim, porque a história devia passar-se numa casa de
viúva sem filhos, sem outros rendimentos além dos que conseguia com o aluguer
de todos os quartos da casa, nem que para isso tivesse de dormir num divã, na
marquise, por baixo da gaiola do canário. Personagens havia de os inventar, e não seria muito
difícil, que relatos de vidas como as que passavam pela casa da viúva foi coisa
que não faltou nesses anos de gente que acorria à capital, vinda de todo o país,
para um emprego, para os estudos que na terra não havia, bem como para os solitários, de fracos
trabalhos, que a casa só sua não podiam aspirar. Traçar-lhes o retrato físico e
mental havia de ser um bocado complicado, que inventar pessoas é uma coisa,
fazê-las agir com a incoerência necessária para que pareçam reais é outra e por
isso há os escreventes que escrevem e os escritores que criam, escrevendo.
(continuará?)
Licínia Quitério
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