Nunca encontrei lugar melhor para ler um jornal do que uma mesa de café, de preferência com tampo quadrado, com sessenta por sessenta. Em casa, nunca tive uma mesa dessas e duvido que, se a tivesse, fosse a mesa de ler o jornal, sem que logo se atafulhasse de papéis, livros, esferográficas, corta-unhas, um pacote de açúcar, o comando electrónico de qualquer geringonça. O certo é que a leitura de um jornal em casa me obriga a esforços que me põem mal disposta . Pode ser a mesa da sala, que tem mais de sessenta numa das dimensões, mas é baixota e não está tão perto do sofá que não me obrigue a debruçar-me, as costas em desamparo, a barriga a dizer que agora é maior e já não admite dobragens como antigamente. Há a mesa de trabalho, vulgo secretária, com o extenso tampo e a cadeira ergonómica, confortável. Apenas um inconveniente, ou melhor, um somatório deles: o tampo está literalmente cheio, de teclados, ratos, monitores, parafrenálias dos novos tempos, e mais as dos antigos que coexistem: os vasinhos cheios de canetas, a tacinha dos clips, os papéis e os pisa-papéis que não pisam mas são pisados pelas várias pilhas de livros prontos a colapsar. Pode-se abrir um espacinho, a custo, clareira em densa floresta, mas não dá. O espaço é sempre menor do que o tablóide aberto e lá ficam os cantos do papel dobrados, presos, amarrotados, a não deixar continuar, sem sobressalto, a leitura do texto que continua duas páginas mais tarde. Há a cama, claro, da leitura antes de dormir, mas aquele esticar de braços, as almofadas a escorregarem, o corpo a afundar, o ajeitar permanente dos óculos, a letra de tipo minúsculo que não se conforma com o foco de luz do candeeiro. Resta a mesa da cozinha, mas há sempre o pecado das nódoas, das migalhas que se insinuam por debaixo do papel e picam ao de leve o cotovelo que em má hora resolvemos apoiar sobre a página dos anúncios. Mais soluções sempre terá a casa, por muito pequena que seja, mas nunca me servirão. Tive há pouco a minha hora de luxo, no café a ler um jornal, muito mal escrito quase na sua totalidade, mas à medida da mesa onde até cabe a chávena da bica e mais o pratinho do bolo e o copo de água, tudo em devido lugar, sem incómodo para o folhear deleitoso do jornal, para trás, para diante, até ao fecho e dobragem em canudo que se instala pacificamente debaixo braço. Um mundo perfeito assim não cabe nas casas onde tenho vivido. Ainda melhor do que isto era aquela mesa onde o jornal dava para dois, muitas vezes para três, e a mesa devia ser extensível, porque o jornal era à nossa medida, à medida dos nossos silêncios, só interrompidos porque uma notícia nos provocava para uma conversa sem fim, o jornal já debaixo do braço, e a conversa a continuar, já sem a mesa, mas nós ainda presos à hora perfeita do encontro. Acho que só se ama verdadeiramente quando se lê o mesmo jornal, na mesma mesa, no mesmo café, e nada disto é monótono e tudo é irrepetível, até o silêncio profundo em redor da mesa que parecia ser única naquele café cheio de gente ruidosa. Hoje, a tal mesa com sessenta por sessenta é o quadrado perfeito da imperfeição dos meus dias.
Licínia Quitério
1 comentário:
Licínia, sinto uma tal harmonia quando te leio, não sei como chamar-lhe, se harmonia, se pertença. Que bem que escreves!
Enviar um comentário