Ai a minha cabeça, ai a minha cabeça, voz de mulher num
banco mais atrás. Imagino-a ao telefone com alguém lá de casa que lhe diz que
se esqueceu de apagar o gás do fogão, ou que deixou o gato fechado no roupeiro,
ou que se esqueceu da sogra no supermercado. Isto imagino eu porque de facto
nada sei de toda aquela gente que entra e se apeia e se senta, se houver lugar,
ou fica de pé, aguentando solavancos e calores condicionados. Eu só posso
imaginar que o rapaz de cabelo em repuxo deseja que morra já ali a mulher
volumosa que insistiu em ocupar o lugar
onde ele sentava a mala grande e pesada. Levou-a ao colo, pois, o resto da
viagem, que a mulher assim mandou, de voz forte e redondo corpo. Os outros
rapazes e raparigas, que têm mais ou menos fios ligados aos ouvidos, à cintura,
às mãos, arrumo-os numa qualquer história batida de seres extraterrestres,
extra mesmo galácticos, a espiarem, sempre a espiarem, que é isso que fazem
todos os visitantes do longe muito longe. Na diversidade de passageiros, imagino que entre um árabe com uma
terrina nos braços ou uma mulher velada com uma galinha morta num saco de
palha. Imagino, mas quem aparece na paragem seguinte é um vulgar ser
terrestre, vestido de luto carregado,
com fitas e caricas coloridas e na mão uma pandeireta pequena que tilinta muito
levemente corredor fora, agarra aqui, agarra ali. No final da curta viagem,
desaguamos num cais de pressas e sujidades, igual a todos os cais deste mundo,
onde se roçam respirações várias,
alimento de muitos filmes, muitos livros, muita ficção do real ou irreal de que
se fazem as viagens, mesmo as interurbanas de vou ali e já volto.
Licínia Quitério |
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